Lições não aprendidas e estratégias ineficazes

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Ainda não sabemos como 2025 ficará registado nas estatísticas dos incêndios rurais. Mas já é certo que se juntará à lista dos anos mais severos ao lado de 2003, 2005 e 2017. É tempo de nos interrogarmos sobre a recorrência deste desastre, ao longo de mais de duas décadas perante a nossa impotência para o impedir. Qual a razão da ineficácia evidente das políticas e das estratégias anunciadas, ano após ano, depois dos incêndios de maior dimensão.

Também em 2003 se viveram situações dramáticas e se anunciaram medidas reformadoras. Com um número diário de deflagrações nunca inferior a 153 durante quase um mês — atingindo o pico de 650 ocorrências num único dia, a 12 de agosto — o país viu arder mais de 470.000 hectares, dos quais 262.909 eram povoamentos florestais. Foram destruídas 2.336 edificações, incluindo 539 habitações, obrigando ao desalojamento de centenas de pessoas. A tragédia humana foi igualmente devastadora: 21 vítimas mortais, entre elas dois bombeiros e dois técnicos florestais. Segundo dados da Segurança Social, 3.476 pessoas foram diretamente afetadas ou deslocadas.

Os relatórios da época apontam para temperaturas máximas e mínimas persistentemente elevadas, ventos fortes e humidade reduzida. Hoje, essas condições são quase normais, mas em 2003 eram excecionais. Era o prenúncio das alterações climáticas e do aquecimento global. Mas quem ousava invocar esse fenómeno como fator agravante era, muitas vezes, alvo de critica — especialmente se ocupasse cargos governativos.

É verdade que, perante a calamidade dos incêndios, por todo o lado, provocados pelas mais diversas causas, humanas e naturais e favorecidos por condições meteorológicas anormais, tudo se conjugava para comprometer a capacidade de resposta do sistema de proteção civil e dos bombeiros que então entravam em fase de reforma, onde, compreensivelmente, foram detetadas algumas debilidades posteriormente corrigidas.

Apesar das limitações do sistema, houve uma mobilização exemplar. Dirigentes experientes coordenaram milhares de operacionais da Proteção Civil, Bombeiros, GNR e Forças Armadas. Foram ativados planos de emergência, declarados estados de calamidade e garantida assistência às populações.

Perante a escassez de meios — inevitável em situações extremas — Portugal recorreu à cooperação internacional. Através do MIC (Monitoring Information Center) da União Europeia e de acordos bilaterais, foi possível obter ajuda em tempo recorde. Em menos de 12 horas, dois Canadair espanhóis já combatiam incêndios no centro do país. Seguiram-se meios aéreos da Itália, França, Alemanha e Marrocos.

Também foi acionado o Fundo de Solidariedade da União Europeia, e em apenas dois dias, organizou-se uma visita da Comissária responsável às zonas devastadas, onde se reuniu com autarcas locais.

Livro Branco dos Incêndios Florestais 2003 – Avaliação e propostas para o futuro

Em finais do mês de agosto, quando a gravidade dos incêndios já era mais reduzida, o Governo decidiu tornar pública a sua preocupação e lançar uma reflexão crítica sobre as fragilidades reveladas pelo sistema nacional de prevenção e combate aos incêndios. Foi nesse contexto que surgiu a proposta de elaboração do Livro Branco dos Incêndios Florestais 2003, um documento técnico e estratégico com o objetivo de analisar a crise, identificar falhas e apresentar propostas de reforma estrutural, promovendo uma abordagem sistémica e integrada da proteção civil e do ordenamento florestal.

Nele se contemplavam reflexões e propostas desenvolvidas por uma equipa multidisciplinar, reunindo contributos de entidades diretamente envolvidas nas operações de socorro, como os Governadores Civis, o Serviço Nacional de Bombeiros e Proteção Civil, a Liga de Bombeiros Portugueses, a Associação Nacional de Municípios Portugueses e a Associação Nacional dos Bombeiros Profissionais. Académicos e especialistas em áreas como silvicultura, meteorologia, economia e ordenamento do território também participaram, enriquecendo o debate com perspetivas técnicas e científicas.

Entre as principais recomendações, destacava-se a necessidade de reforçar a prevenção e gestão de riscos florestais, bem como de reorganizar o modelo de funcionamento do Serviço Nacional de Bombeiros e Proteção Civil e todo o sistema operacional. O documento propôs ainda a atualização do Plano Nacional de Emergência e a melhoria da articulação entre os diferentes níveis de resposta.

Para realizar no médio prazo, foram sugeridas medidas como o fortalecimento do subsistema municipal de proteção civil e a realização de auditorias técnicas aos corpos de bombeiros, com foco em equipamentos, formação e recursos humanos. O Livro Branco também defendeu a criação de um Observatório Nacional Permanente para os incêndios florestais e a elaboração de uma Carta Nacional de Risco, enquadradas na Lei de Bases da Política Florestal.

Mais do que uma resposta pontual, o documento procurou afirmar que os incêndios não são um problema sazonal, mas sim um desafio estrutural que exige políticas públicas integradas e o envolvimento ativo das populações.

Lições aprendidas

A Diretiva Operacional para 2004 levava já em conta muitas das medidas propostas pelo Livro Branco, em fase de conclusão ou até já em vigor, como, por exemplo:

O reforço da capacidade de resposta do sistema de proteção civil em meios materiais e humanos; a criação de uma Unidade de Apoio à Decisão junto de cada Coordenador Distrital, dotada de meios informáticos com acesso a uma base de dados geográficos e cartográficos incluindo GPS; a criação de uma Célula de Resposta, constituída por elementos do Corpo de Bombeiros locais e da Direção-Geral das Florestas, formando um verdadeiro estado-maior de coordenação e comando de operações a nível distrital cuja ausência bem se fez sentir; uma novidade no terreno seria o pré-posicionamento de meios terrestres e aéreos de acordo com a carta de risco de incêndios, dando-se prioridade ao eixo Castelo Branco-Viseu e ao Algarve; no domínio da formação de bombeiros, foram promovidos cursos de formação de coordenadores aéreos e de organização de postos de comando.

Estas eram as principais medidas realizadas ou em curso menos de um ano depois de anunciadas, através das quais esperávamos melhorar substancialmente as condições de resposta imediata no combate aos incêndios florestais. Reformas mais profundas continuavam em estudo e deveriam ser concretizadas até final de 2004 ou nos anos que ainda faltavam para o normal termo do mandato governamental.

No domínio da prevenção e da responsabilidade do MAI, posso referir ainda o reforço em equipas, número de militares e viaturas do SEPNA (Serviço de Proteção da Natureza da GNR), criado no primeiro ano do meu mandato e posto à prova com resultados excelentes logo depois.

Assim, passado um ano, a maior parte das medidas estruturais propostas no Livro Branco estavam em fase adiantada de concretização. Outras, porém, pela sua complexa interconexão com as áreas florestais exigiriam mais algum tempo para poderem ser consolidadas com eficácia e acabaram por não ser concretizadas ou foram abordadas pelos governos que se seguiram.

Por exemplo, o XVI Governo Constitucional criou o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios Florestais (PNDFCI) e as Zonas de Intervenção Florestal (ZIFs) que permitiriam a gestão coletiva de áreas vulneráveis, cujos objetivos em tudo se assemelhavam às propostas do Livro Branco para a política florestal.

Lições não aprendidas e estratégias ineficazes

Mais de duas décadas após a publicação do Livro Branco em 2003 e depois de tantas medidas legais e estruturais, entretanto, aprovadas no domínio da prevenção como do combate aos incêndios florestais, Portugal continua a enfrentar, ano após ano, uma temporada de incêndios florestais marcada por destruição, medo e perda de vidas.

É preciso reconhecer que houve uma evolução positiva com importantes reformas do sistema de proteção civil assim como das estruturas operacionais de combate aos incêndios. Sobretudo, depois de 2017, que fica, na história, como o ano em que ocorreu a maior tragédia ligada aos fogos florestais em Portugal, houve importantes avanços em vários domínios ligados à prevenção e ao combate.

No entanto, os incêndios de 2025, aí estão a recordar-nos dramaticamente que persistem fatores de desorganização que poderiam já ter sido resolvidos. Custou-me, particularmente, ouvir alguns corajosos autarcas e cidadãos aflitos a clamar por melhor coordenação e mais meios, tal como em 2003.

Em tempo de incêndios, compreende-se que o foco mediático e político permaneça, naturalmente, centrado no combate às chamas, enquanto a prevenção — a verdadeira chave para quebrar este ciclo — segue negligenciada. A opinião pública, absorvida pelas imagens de horror transmitidas pelas televisões, parece esquecer que o combate é apenas a última linha de defesa.

Sem uma estratégia preventiva eficaz, continuaremos a reagir em vez de antecipar. Como dizem os especialistas, não basta apagar fogos. É preciso impedir que comecem. Isso exige investimento contínuo em educação ambiental, gestão florestal sustentável, fiscalização rigorosa e envolvimento das comunidades locais.

Fundamental é estarmos cientes de que reformas estruturais — como as que envolvem proteção civil, ordenamento florestal ou saúde pública — afetam múltiplos setores e exigem mudanças profundas e duradouras. Para que essas reformas sejam sustentáveis e eficazes, precisam de apoio alargado. Só reformas com base em consenso tendem a sobreviver.

Ex-ministro da Administração Interna

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