Lisboa, esquerda e voto “útil”

Publicado a

Para quem pensa e vota à esquerda, a discussão sobre o voto útil é tão antiga como a democracia. Eleição após eleição, à esquerda da esquerda é pedido que se anule, que desapareça, que desista de uma política exigente, em nome do confronto com a direita.

Curiosamente, a história longa da deriva do país à direita e da degradação da nossa democracia poderia muito bem ser contada a partir desse apelo que substitui a política por um pragmatismo sem ideias e, frequentemente, sem alternativas substanciais, e em que o mal menor é cada vez pior.

Um exemplo entre muitos dessa degradação foi o momento em que José Sócrates pediu o voto da esquerda para ser ele e não Passos Coelho, a implementar o programa da Troika, que ambos assinaram.

É por esta razão que os apelos ao voto útil passaram a provocar em parte do eleitorado de esquerda uma súbita e salutar urticária. Por esta e outra razão, que recentemente se tornou evidente com a Geringonça. Não é só a política que é maltratada no discurso do voto útil. A matemática também não sai ilesa.

A geringonça veio mostrar que são mesmo as maiorias, mesmo que plurais, que contam. E que a pluralidade pode fazer a diferença dentro dessas maiorias. Só que há um problema: nas Câmaras não funciona assim e a esquerda não pode fazer de conta que não o percebe. Nas Câmaras, quem tem mais um voto forma o executivo, mesmo que em minoria. Uma diferença crucial que a esquerda também conhece bem, e desde longe.

Em 1979, Kruz Abecassis conquista a Câmara Municipal de Lisboa com 46%, contra 25 do PS e 23 da APU (que antecedeu a CDU). Em 82, ganha por 41 contra 27 e 26, respetivamente. E em 85, reforça a sua maioria outra vez, obtendo 44%. Desta vez, a ordem à esquerda inverte-se com os 27% da APU e o colapso do PS para os 18, na sequência do Governo de Mário Soares. Em todas, PS e APU tiveram mais votos que Abecassis, Em todas, Abecassis ganhou.

Dois meses antes, Cavaco Silva conquistava a sua primeira maioria (relativa). Dois anos depois, conquistou a primeira de duas maiorias absolutas acima dos 50%. Chegados a 89, Abecassis já ia em 10 anos de Presidência e não havia limitação de mandatos. A direita, embalada pela conjuntura e pelo dinheiro de Bruxelas, acumulava confiança e arrogância. A esquerda acumulava derrotas.

Em 89, o impossível aconteceu. PCP e PS falaram. O PCP prescindiu da solução natural, que seria a de liderar essa coligação, em função dos resultados das eleições anteriores, e decidiu apoiar Jorge Sampaio. O PCP não escolheu capitular perante o PS, não escolheu ceder perante a pressão do voto útil. Percebeu a necessidade de libertar Lisboa de Abecassis e escolheu vencer. E venceu.

Dir-me-ão que agora é diferente. E é verdade. O contexto é diferente (é pior) e os protagonistas são diferentes. Mas o que realmente mudou foi a leitura feita pelo PCP e a sua política de unidade. O PCP entende que a experiência da Geringonça foi a causa de todos os seus males e decretou uma política de barreira higiénica, não apenas em relação ao PS, mas também em relação a todos os outros partidos à esquerda. 308 municípios, zero alianças.

Esta escolha é importante à luz do argumento central do PCP para ter rejeitado uma coligação: o PS viabilizou com a sua abstenção os orçamentos de Carlos Moedas. Foi por isso conivente com as escolhas políticas subjacentes. O PCP recusou uma proposta de unidade pelo facto de o PS ter feito o que o PCP já fez em dezenas de municípios, incluindo, por exemplo, Coimbra neste preciso momento!

Água debaixo da ponte. A coligação avançou com quem quis, o PCP, legitimamente, decidiu ficar de fora. Investiu nesse combate o melhor dirigente da sua geração, João Ferreira, que, sem surpresas, arrancou para uma boa campanha. Mais surpreendentes são os elogios que tem merecido de vários comentadores da direita e do próprio Moedas, todos anticomunistas encartados. Mas talvez esta simpatia não seja assim tão surpreendente e, em todo o caso, é só até dia 12. Depois, o cancelamento do PCP há-de continuar, com esses mesmos protagonistas, eventualmente reforçados.

É assim que aqui chegamos. Todas as sondagens divulgadas dão João Ferreira eleito. Todas dão a Presidência da Câmara no fio da navalha. Isso significa que podemos ter uma Câmara de uma esquerda plural em que João Ferreira poderá ser um vereador com pelouros e a esquerda da esquerda será determinante. Ou podemos ter uma Câmara em que toda a esquerda se unirá finalmente numa minoria absoluta derrotada, mas agora com uma maioria absoluta entre Moedas e a extrema-direita. E quem pensar que Moedas não governará com o Chega não está a prestar atenção. Se o Luís “não é não” Montenegro já o está a fazer, com Moedas as contas são ainda mais fáceis… A parada não podia ser mais alta.

Pronto, lá está o voto útil outra vez. Não, não está. E por duas razões. Em primeiro lugar, a política de unidade é política. As forças que entraram na coligação Viver Lisboa não se anularam em benefício do Partido que podia ganhar. Integraram uma coligação, negociaram o programa,

assumirão responsabilidades. Ao PCP foi proposto o mesmo, mas em lugar privilegiado, não apenas pelos lugares (que também contam), mas pelo peso político que teria na própria definição das escolhas políticas fundamentais. Foi o PCP que não o quis.

Em segundo lugar, a política propriamente dita. É tão preguiçoso o discurso que ignora a política para pedir o voto útil, como o que o faz para supostamente o rejeitar. E quem diz que o programa do Viver Lisboa é parecido ou sequer comparável ao de Moedas (ou mesmo o de Medina, antes do acordo à esquerda), ou não o leu, ou não está a ser sério. Noutros concelhos, essa convergência não foi possível. Em Lisboa, foi.

Na realidade, há muito mais sobreposição entre o Programa do Viver Lisboa e o da CDU do que João Ferreira tem querido reconhecer, desde o reforço da habitação pública e cooperativa e da oferta de transportes públicos até à requalificação dos espaços verdes, passando pela defesa do comércio local e das lojas históricas. No que divergem, a CDU explicita o fim da devolução do IRS, uma medida altamente regressiva, em que o programa da Coligação é omisso. O programa do Viver Lisboa apresenta medidas concretas e vai muito mais longe que o da CDU na contenção do Alojamento Local, um dos principais fatores que restringe o acesso à habitação na cidade. O programa da coligação não é o que nenhuma das forças que compõem a coligação teria proposto sozinha, PS incluído, mas está sobretudo numa galáxia diferente do de Carlos Moedas e do seu sonho de uma cidade condomínio fechado e militarizado.

É por isto que não é de voto útil que falamos quando falamos da necessidade imperiosa de derrotar Moedas. A política que lhe pode suceder não é só uma viragem para Lisboa. Tem impactos no país, como terá no cenário inverso. Essa é a escolha e é intensamente política. É mostrar que uma esquerda plural pode fazer diferente e mostrá-lo ao país. É olhar para o contexto mais preocupante de que há memória na nossa democracia e voltar a escolher voltar a vencer.

Diário de Notícias
www.dn.pt