A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra, no artigo 20.º, o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, impondo a garantia de tutela jurisdicional efetiva e vedando a denegação de justiça por insuficiência de meios económicos. Não obstante, a prática jurisprudencial recente evidencia um movimento de restrição, por via interpretativa, do acesso às instâncias de cúpula — Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e Tribunal Constitucional (TC) — que tem correspondido, na prática, a um estreitamento das vias recursórias. No domínio do processo civil, a articulação dos artigos 629.º, 671.º e 672.º do CPC transformou a “dupla conforme” de exceção funcional em estrutural motivo de não apreciação: quando a Relação confirma a decisão de 1.ª instância sem voto de vencido e com fundamentação essencialmente coincidente, a revista encontra-se, em regra, vedada. A abertura pela revista excecional, que deveria funcionar como válvula de segurança nomofilácica, tem sido aplicada com um escrutínio excessivo quanto à relevância jurídica ou social da questão, à necessidade de melhor aplicação do direito ou à contradição com jurisprudência do STJ, deslocando o instituto da sua finalidade de estabilização interpretativa para um regime de quase insindicabilidade das decisões. A mesma lógica restritiva manifesta-se no tratamento do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, em que o conceito de “contradição ou oposição de julgados” passou a ser aferido segundo um padrão de identidade fáctica quase absoluta, acompanhado de exigência de divergência frontal e explícita na interpretação da mesma norma, adjetiva ou substantiva. Esta orientação, ao condicionar a cognoscibilidade das decisões das Relações à coincidência do pano de fundo material, desconsidera que o objeto próprio da uniformização, quando estejam em causa as mesmas normas substantivas ou adjetivas, é o sentido normativo dos preceitos e a sua aplicação transversal, independentemente da situação fáctica a que as mesmas se aplicam. A recusa de apreciação é ainda mais surpreendente quando estão em causa normas adjetivas que dirimem tramitações processuais e direitos adjetivos das partes e não situações fácticas controvertidas. Um caso paradigmático é o indeferimento de uniformização por se entender que a aplicação dos mesmos preceitos processuais a litígios que envolvam arrendamento e propriedade, não satisfaz a identidade requerida. Tal posição ignora que, em se tratando de ónus de alegação e prova, requisitos de admissibilidade, efeitos dos recursos ou preclusões, a coerência sistémica postula precisamente um critério de comparação que privilegie a norma processual em si e não a natureza substantiva do conflito que é indiferente e só serviu de pretexto para a não uniformização de entendimentos. No Tribunal Constitucional, embora a lei consagre o recurso de fiscalização concreta e sucessiva da constitucionalidade, a conjugação entre pressupostos formais estritos (v.g. a suscitação adequada e tempestiva da inconstitucionalidade, utilidade do conhecimento, integração da norma na ratio decidendi) e o regime de custas do RCP, tem produzido um efeito dissuasor assinalável. A onerosidade das taxas de justiça e o risco de custas agravadas em recursos com valor elevado ou tramitação complexa criam uma barreira económica incompatível com o n.º 1 e o n.º 5 do artigo 20.º, reconduzindo a garantia de supremacia constitucional a um privilégio de litigantes mais endinheirados. O efeito agregado destas práticas é uma erosão da função nomofilácica do STJ e da função de controlo da constitucionalidade do TC, com a correlativa multiplicação de interpretações divergentes entre as Relações e a rarefação de decisões sobre aplicações de incisos constitucionais. Cidadãos e empresas veem-se, assim, privados do escrutínio técnico das instâncias de cúpula precisamente onde se concentram os mais altos padrões de experiência jurisdicional. A previsibilidade das decisões e a igualdade na aplicação do direito ficam, assim, comprometidas. Em conclusão, a filtragem intensa pela dupla conforme, a conceção estreita de contradição de julgados e ónus de custas dissuasor no TC, contrariam a teleologia dos recursos de cúpula e o comando do artigo 20.º da CRP. A manutenção deste rumo é manifestamente incompatível com as exigências de um Estado de Direito democrático. AdvogadoSócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados