Camões nunca foi a Roma. Mas o seu canto é soprado por Virgílio (“Armae virunque cano”) e por toda a sua epopeia surgem os diferentes personagens da mitologia greco-romana, fazendo-nos presumir que lhe seriam igualmente familiares as Metamorfoses de Ovídio. Roma esteve em Camões. Todo esse mundo da mitologia antiga desta área greco-latina em que nascemos é-nos hoje mais estranho do que familiar. Daí uma das dificuldades de ler hoje Camões. Quando abordei, jovem estudante do liceu, a epopeia de Camões, servi-me da excelente edição de Emanuel Paulo Ramos, que contém uma verdadeira enciclopédia dos mitos que aborda Camões, contribuindo as suas notas para a melhor compreensão do poema. Mas se de Camões passarmos a Camilo e a Eça, serão ainda inteligíveis no mundo de hoje a vitalidade sensual e violenta das províncias em Camilo e a vida urbana, cheia de artefactos ultrapassados e de formas de tratamento obsoletas, dos romances de Eça? O problema da falta de leitura e, sobretudo, de prazer na leitura das grandes obras do nosso cânone, por parte de muitos dos jovens de hoje não se deverá à dificuldade em abordar mundos que lhes são tão estranhos? E, no entanto, só a leitura dessas obras nos permite sentir o espírito e as motivações de todas essas gentes dos séculos passados, compreendê-los e alargar, através destas leituras, a nossa compreensão do mundo. É uma herança que nos é oferecida e que vem dar mais acuidade ao nosso saber e um melhor entendimento das motivações humanas. Porque os sentimentos e emoções humanas não mudam assim tanto... É certo que outras mitologias se vieram hoje acrescentar ao nosso imaginário. Mas, vendo bem, elas provêm afinal do reflexo de antigas histórias, sejam os aprendizes de bruxos de J.K.Rowling ou os heróis feudais de Tolkien. Nesta minha última visita a Roma, onde encontrei os estudiosos de Camões nas universidades italianas, senti (será ilusão?) que numa cidade em que as ruínas sempre estão a intervir, na sua conversa com a malha urbana, é mais difícil esquecer as lendas do passado. Será por isso que a História e a História de Arte têm ali mais peso e importância nos currículos educativos? Nós podemos ter toda a inteligência artificial que quisermos para enfrentar os problemas técnicos do nosso tempo, mas o conhecimento vivido e sentido das histórias do nosso passado e dos passados de outras civilizações ou religiões sempre nos fará falta para esta coisa simples e natural, que nos arriscamos a perder: compreendermo-nos uns aos outros. Um ensino concentrado na capacidade e produtividade técnicas tende a fazer esquecer a dimensão criativa do nosso cérebro, graças à qual a Humanidade ousou arriscar em mudanças e descobertas. Tende a criar aquilo a que António Carlos Cortez, um escritor e professor que tem vindo a alertar para a redução do estudo da História e da Literatura nos nossos currículos escolares, chama “amnésia cultural”. Assim como na amnésia infantil esquecemos a nossa experiência dos primeiros anos de vida, na amnésia cultural é o passado da nossa Humanidade que fica posto de lado e esquecido, como um utensílio que deixou de fazer falta. E a nossa liberdade assenta em podermos imaginar outros mundos possíveis. Diplomata e escritor