Publicado em Paris, sob anonimato, saía em 1825, na Livraria Nacional Estrangeira, um poema em verso que hoje, em 2025, duzentos anos depois da sua 1ª edição, poucos lembraram. As celebrações dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões ofuscaram, ou não foram propícias, a que igualmente se convocasse Almeida Garrett (1799-1854), o introdutor do Romantismo em Portugal e que nesse poema de "índole absolutamente nova", abria a nossa literatura aos ventos da renovação romântica. Ventos que, diga-se, que sopravam já, desde o último quartel do século XVIII. Baudelaire definiu a arte romântica: uma nova maneira de sentir. Garrett é, no exílio de 1823, aquando a Vilafrancada e a contra-revolução, um atento leitor dessa literatura nova. Compreende que a linguagem e os temas mudaram. Por essa Europa dos irmãos Schlegell e de Goethe, de Novalis e de Holderlin, da Madame De Stael, inspirados por essa querela de Modernos contra Antigos, num esforço por arrancar ao espartilho clássico do soneto e da metrificação inflexível (o decassílabo) a linguagem da poesia, a qual se queria agora mais próxima do património popular, da dicção de rua, é completamente outra. Atento à mudança em curso, compreende que a Europa, guiada culturalmente por essa França liberal, a de Chateaubriand e de Vítor Hugo, de Vigny e de Lamartine, exalta o primado do indivíduo, a sua liberdade fundamental e, claro, as tradições populares, as nacionalidades. O romantismo é um movimento imparável de afirmação do esteticismo de cada país, o dito nacionalismo estético. A França é o modelo: a pátria heróica nascida da vitória de 1789, da herança do Iluminismo e do espírito da Enciclopédia e agora posta em quadro por Delacroix. Garrett, formado no arcadismo, investiga agora as fontes primitivas: de 1819, ano em que publica o seu Retrato de Vénus e o defende, só, em tribunal (nascia "O Divino"), ao seu Camões de 1825 vai toda a distância que separa um fiel leitor de Horácio de um apaixonado seguidor de Hugo. Romantismo: essa voga (ou vaga) que, de Walter Scott e de Coleridge, a Byron e Keats, de Shelley a Bram Stoker (irlandês o criador do Drácula), é o tempo do nosso Almeida Garrett, de baptismo João da Silva Leitão, que nos diz hoje? Aos estudantes que lêem o nosso drama romântico, o Frei Luís de Sousa (1846), que lhes diz Garrett? Se o renovador do nosso idioma com as Viagens na Minha Terra (que saiu dos curricula há mais de 30 anos!!) é um dos expoentes máximos dessa escola social e política, literária e estética que, bem vistas as coisas, foi essencial para o que veio a suceder na poesia a nível mundial (Octavio Paz não hesitou em considerar os modernismo uma extensão do romantismo, sistema que continuaria vivo muito depois da reação realista), como voltar a ler esse Garrett tão esquecido? Em ano de celebração (pífia) do autor de Os Lusíadas, Garrett não foi lembrado… Mas o seu poema em verso novo, com aquela "Advertência" onde diz "não consultei Horácio nem Aristóteles; mas fui insensivelmente depós o coração e os sentimentos da natureza, que não pelos cálculos da arte e operações combinadas do espírito."; nesse prólogo onde se apresenta "cristão vate" que faz "cristãos versos", Garrett mais do que seguia o Byron de Child Harold e igualmente afirmava não "macaquear" os franceses. .Que é o poema Camões? É um poema sobre a composição de Os Lusíadas e a sua publicação. É um longo poema dividido em dez cantos, é certo, reenviando à épica camoniana, e que segue "a fábula" da epopeia quinhentista, mas só episodicamente a segue; mas é profundamente renovador! Trata-se de um poema sobre o fazer da poesia! É a escrita a acção principal deste poema de "índole absolutamente nova". O Camões, que Garrett não assina, é também um texto onde o autor português, lembrando Ferdinand Denis, ironiza quanto à novidade de um livro sobre as literaturas do sul europeu, umas "Cenas da Natureza Sobre os Trópicos", coincidentemente parecido com certos passos do seu poema em verso livre. Composto desde Julho de 1824, começado a imprimir em Janeiro de 25 e vindo a lume em Fevereiro, Garrett contata: em Dezembro de 1825, Deniz teria parafraseado (quase plagiado?) passos do Camões. Mas isto não importa assim tanto. O que importa é o facto consumado: este poema primacial da nossa poesia moderna, não foi suficientemente elogiado, citado, lido neste ano que agora quase termina. Camões, que não teve da parte do Estado Português nenhuma grande celebração dos seus 500 anos, não fica só no desprezo, ou na condescendente celebração que lhe fizeram os governantes deste rectângulo sem memória. Garrett o acompanha. Mas haverá, hoje, em 2025, quem, aproximando-se deste poema novo, compreenda que a construção poética, a meditação sobre a escrita tem, nesta ficção de Almeida Garrett, um marco geodésico indispensável para os (raríssimos) que pensam a escrita e a escrita da poesia. Professor, poeta e crítico literário Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.