Labirintos

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O prédio é sito na Rua dos Labirintos. São 3 da manhã. O terceiro andar tem a luz da sala acesa. José está enrolado sobre si mesmo, as mantas cobrem-lhe o corpo franzino. Hipnotizado, mantém a televisão ligada como se pudesse evadir-se de si. Os ossos doem. É sempre assim em dezembro. O frio parece ativar todas as feridas de vida pelo corpo adentro. Mas este dezembro está quente, muito quente. Ainda assim, a dor é a mesma. O olhar atravessa a televisão, não vê o que se passa nos movimentos das imagens, mas os pensamentos, esses, não param. Turbilhões de memórias não o largam. E quando antecede o Natal tudo parece piorar. "Porque não vens falar ao teu pai?" As palavras da mãe ecoam-lhe na cabeça, quase tão fortes, como a culpa que o consome. Todos os anos. Em ciclos de repetição, como monólogos lentos, que não têm fim. A televisão parece passar agora os filmes onde se visualiza em miúdo. Vê o pai com aquela figura de face dura. Lá em casa, não raras vezes, explodiam os tumultos de humor, objetos que se partiam. Gritos. Tinha medo dele, mais do que os demónios que receava em noites de tempestade. E, ainda assim, para além do medo, havia culpa. Por alguma razão sem nunca ter pensado assim, é como se em parte, tudo aquilo fosse culpa dele. Sim, na cabeça dele, nunca foi o homem que deveria ter sido ao olhar do pai. Mergulhou-se na culpa e a raiva, essa, nunca apareceu, fosse qual fosse a altura do ano.

São 5 da manhã. Rosa abre os olhos repentinamente, como que acordada de um pesadelo. O cansaço consome-lhe o coração. Todos os dias se deita mais cedo e todos os dias adormece mais tarde. Mas as manhãs, essas, acordam sempre antes do despertador tocar. Não consegue voltar a adormecer. O apito da chaleira ecoa-lhe no cérebro como um alarme tremendo. Está completamente sozinha. O chá quente não aquece a alma. Invariavelmente, procura começar o dia na pequena horta que tem nas traseiras. O único luxo, no meio de uma cidade, fechada sobre os seus cinzentos. Rega as plantas, como banha as pequenas alfaces. Com a esperança, que algo pudesse mudar.

Já não tem memória da avó que a criou. Os pais emigrados, nunca voltaram para a resgatar. Na verdade, nunca soube quem foram ou quem são. O amor da avó foi o único mundo que conseguiu viver em miúda. Quando a viu morrer de cancro, desabou o estreito chão que a suportava. Os miúdos da escola riam das camisolas feitas de croché e do amor da avó. Ela olhava dilacerada sem entender o que se passava no mundo dos humanos. Hoje, os movimentos matinais, repetitivos, internalizam-se como atos de sobrevivência. E o que mais gosta, na verdade, é de lançar as pequenas sementes à terra. Nesses dias, a desesperança diminui ligeiramente. Algo pode germinar. Por muito que sinta que tem tentado, não parece haver maneira de as pessoas fazerem parte da sua vida. Nem esta coisa das redes sociais parece ajudar. Agora, as pessoas falam por aí. Pelos vistos, dizem, relacionam-se por aí! Volta para dentro, mas ouve a família Santos, em rebuliço, chegados do supermercado. Parecem felizes. Falam do bacalhau, do azeite, e sobretudo dos doces que planeiam fazer para toda a família, que este ano vem do Alentejo de propósito para a consoada. Rosa fecha a porta das traseiras e vira-se para a chaleira que apita novamente, mas só ouve em ciclos repetitivos: "não o Natal, não!"

Asdrubal odeia viver no prédio. O sobrolho sempre cerrado expressa a zanga com que olha para os vizinhos. A sua majestosa coleção de música é o único refúgio onde parece encontrar algum apaziguamento. As Quatro Estações de Vivaldi ecoam na sala enquanto abre o email. Uma encruzilhada. Nas últimas semanas têm chovido os contactos de toda a família. Querem-no lá, nas suas casas, na ceia de Natal, que vai estar repleta dos mais variados recheios e luxos. A cunhada Luísa faz questão de ser sempre a primeira a convidá-lo. Vão juntar-se todos na mansão em Sintra, junto ao mar. Mas a lareira irá aquecer o lar noite dentro e manter todos unidos. O irmão Paulino, esse, manda sempre uma mensagem: "ouve, já sabes que contamos contigo este ano. O Algarve é ótimo nesta altura do ano. Apanhas sol e tens um quarto só para ti!" Os irmãos não se falam, entre si. Há anos. Desde que os pais morreram nunca mais houve paz. Talvez tivesse sido melhor não haver tanta coisa por dividir. As terras e o património foram tão divididos como está a família. Ficaram-se os bens, foram-se as relações. Sente-se puxado por todos os lados, como se fosse mais um objeto, a definir em sede de partilhas. Mas este tipo de interesse apenas parece acontecer nesta fase do ano. À última hora, sabe que vai arranjar uma desculpa, e acabará por ir ter com os amigos do costume. No restaurante de sempre. Mudou o disco. Senta-se no sofá, aconchegado pelo seu cão, e mergulha nos Noturnos de Chopin.

Diretor Clínica Ispa

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