A Volta a Espanha é uma das maiores provas de ciclismo do mundo. Milhares de quilómetros percorridos, centenas de pessoas envolvidas na organização, equipas técnicas e logísticas que trabalham durante meses, e ciclistas que investem anos da sua vida em preparação física e psicológica para um evento de três semanas. E, no entanto, tudo isto tem sido posto em causa por um punhado de manifestantes que, em nome de uma causa justa, decidiram enveredar por meios absolutamente inaceitáveis: bloquear etapas, interromper percursos, anular classificações.A razão invocada é conhecida: protestar contra a presença da equipa Israel-Premier Tech, em nome da indignação com a ofensiva israelita em Gaza. Não é preciso grandes explicações para compreender a revolta que esta guerra suscita. O ataque vil do Hamas, um grupo terrorista que mata civis sem hesitação, teve como resposta uma ação militar israelita de dimensão desproporcionada, que mergulhou a Faixa de Gaza numa tragédia humanitária. O mundo assiste, dividido entre a repulsa pelo terrorismo e a indignação pela violência indiscriminada.Mas compreender a indignação não é aceitar todos os meios de a expressar. O direito à manifestação não é um passe livre para prejudicar terceiros inocentes. Os ciclistas da Israel-Premier Tech não são membros do governo israelita, não tomaram decisões militares, não estão em Telavive a carregar nos botões da guerra. São atletas. Julgá-los e puni-los pela simples nacionalidade equivale a condenar um povo inteiro pelo comportamento do seu Estado. É, em última instância, uma forma de intolerância.E o prejuízo vai muito além da equipa visada. Quem interrompe uma etapa de uma grande volta atinge todo o pelotão, todos os que treinam uma vida inteira para, naquele dia, poderem disputar uma chegada. Atinge também os organizadores, os patrocinadores, as cidades que recebem a prova e, claro, os adeptos que esperam pelo espetáculo desportivo. O ciclismo, talvez mais do que qualquer outro desporto, assenta no esforço coletivo e na superação individual. Retirar-lhe essa pureza em nome de uma bandeira política é uma forma de violência.Recordo que há algum tempo escrevi sobre os ataques de tinta verde a políticos portugueses, promovidos por jovens do Climáximo. Também aí a causa era nobre – o combate às alterações climáticas – mas o método era indigno. Atirar tinta, insultar, interromper, não é democracia: é agressão. Agora, nas estradas de Espanha, repete-se a mesma lógica perversa: confundir a liberdade de expressão com a liberdade de prejudicar.A democracia protege o direito a discordar, a protestar, a levantar a voz contra a injustiça. Mas não protege a desordem, o insulto, o bloqueio da vida em sociedade. O que se viu na Volta a Espanha não foi coragem cívica, foi oportunismo. Não foi solidariedade com os que sofrem em Gaza, foi vaidade de palco mediático. E, no final, quem pagou foram os ciclistas, os adeptos e o desporto.As grandes causas merecem ser defendidas com grandeza. O caminho não é transformar provas desportivas em arenas de confronto político. O caminho é reforçar a diplomacia, a solidariedade internacional, o apoio humanitário. Fazer da bicicleta um alvo é apenas mais uma queda na longa descida da intolerância. Professor catedrático