Já cá não está quem falou. Shigeko Sasamori (1932-2024), um rosto de Hiroshima
Aos poucos, vão desaparecendo as últimas testemunhas da Segunda Guerra Mundial, aqueles e aquelas que a sofreram na pele e que dela guardaram fundas cicatrizes no corpo e muitos traumas no espírito. Há dias partiu Warren Upton, embarcadiço no USS Utah, o último sobrevivente do ataque a Pearl Harbour. Agora, fechando o ciclo que vai da entrada da América na guerra até à rendição do Japão, morreu Shigeko Sasamori, falecida no passado dia 15 de Dezembro na sua casa de Marina del Rey, Califórnia. Tinha 92 anos, um filho e dois netos.
Shigeko Sasamori nasceu a 16 de Junho de 1932 em Hiroxima, sendo uma das quatro filhas de Masayuki Niimoto, pescador de ostras, e de Sato (Tanabe) Niimoto, doméstica. Na manhã fatídica de 6 de Agosto de 1945, quando tinha 13 anos, estava integrada numa brigada de estudantes que limpavam o entulho das ruas da cidade para facilitar uma eventual evacuação em massa. Ao ver um avião a riscar os céus, ainda disse a uma colega para observar o objecto branco que aquele acabava de lançar. Do que se passou depois só se recorda de ouvir um enorme estrondo, não sabendo quanto tempo ficou inconsciente. Acordou no meio do caos, envolta em poeira e fumo, e, juntando-se a outros sobreviventes, uns ensanguentados, outros com a pele a cair do corpo, refugiou-se num abrigo improvisado numa escola primária. Implorou por água, gritou pelos pais, que só a encontraram vários dias depois, trazendo-a para casa num estado deplorável: com um terço do corpo coberto de queimaduras, Shigeko tinha a cabeça inchada e o rosto desfigurado, os dedos dos pés colados uns aos outros. Espantosamente, não sentiu dor, mas apenas uma estranha dormência, que recordou até ao fim dos seus dias.
Em 1955, quando foi uma das 25 jovens escolhidas para fazerem cirurgia reconstrutiva no Hospital Mount Sinai, em Manhattan, a revista Time descreveu como ficara: “Perdeu as sobrancelhas, os cílios e os cabelos e, pior ainda, o queixo tinha desaparecido completamente e a parte inferior do rosto parecia ter-se derretido na garganta.”
“As Donzelas de Hiroxima” (Hiroshima Maidens), como ficaram conhecida aquelas 25 jovens, foram acolhidas na sua maioria em centros ou junto de famílias Quaker. Shigeko foi excepção, ficando com uma família de New Canaan, no Connecticut, os Cousins, que praticamente a adoptaram. Viveu com eles cerca de 15 anos, entre a América e o Japão. Em 1962, quando teve o primeiro filho, deu-lhe o nome do patriarca da família, Norman Cousins, em sinal de gratidão pelo muito que haviam feito por ela. No final da década de 1960, começou a trabalhar como auxiliar de enfermagem, tendo como paciente, entre tantos outros, a famosa fotógrafa de guerra Margaret Bourke-White, flagelada pela doença de Parkinson.
Em simultâneo, tornou-se um dos principais rostos dos hibakusha, os sobreviventes das bombas de Hiroshima e de Nagasáqui, mas, ao contrário de muitos deles, que decidiram envolver-se a fundo na política, optou por uma abordagem puramente emocional, “toda centrada no coração”, como disse há dias a directora do “Hibakusha Stories”, um programa filantrópico da Youth Arts New York, o qual, com o auxílio de Shigeko e de outras vítimas, permitiu levar mais de 100 sobreviventes da bomba até à América, para proferirem palestras em dezenas de escolas, a maioria das quais no Estado de Nova Iorque. A par disso, Shigeko Sasamori foi entrevistada para dois documentários famosos (Race to Oblivion, de 1982, e White Light/Black Rain. The Destruction of Hiroshima and Nagasaki, de 2007), fez várias conferências e ministrou cursos de formação para estudantes, estagiários e guias das Nações Unidas e prestou testemunho em diversas sessões do Senado, nomeadamente as da comissão que, em 1980, investigou os efeitos da guerra nuclear sobre a saúde humana. Em nenhuma ocasião mostrou raiva ou rancor em relação aos Estados Unidos, muito pelo contrário, mas nunca deixou de fazer uma defesa intransigente da paz e do desarmamento nuclear.
Estima-se que, em resultado directo e imediato das explosões atómicas, terão morrido cerca de 145 mil pessoas em Hiroxima e 70 mil em Nagasáqui (segundo o Departamento de Energia dos EUA, morreram mais 200 mil nos cinco anos subsequentes, mas ao certo não se sabe). Ao fim de um longo processo reivindicativo, o governo japonês conferiu o estatuto de hibakusha a 650 mil vítimas, das quais cerca de 106 mil ainda estavam vivas em Março de 2024, ano em que ultrapassaram o número dos veteranos vivos das tropas americanas da Segunda Guerra. Apesar dos apoios conferidos pelas autoridades japonesas, os hibakusha e os seus filhos ainda são alvo de muitas discriminações, como sempre ditadas por pura ignorância, a ponto de muita gente acreditar que a radiação tem efeitos hereditários e até contagiosos. A realidade mostra, porém, que, nas sobreviventes que puderam ter filhos, estes não tiveram uma incidência de anomalias ou de doenças superior à das outras crianças nipónicas (há excepções nos casos dos bebés que estavam in utero nas zonas mais próximas do impacto da bomba, os quais nasceram com índices muito elevados de microcefalia).
Há um par de semanas, Vladimir Putin desafiou os Estados Unidos para um “duelo tecnológico” com mísseis balísticos e não foram uma, nem duas as vezes em que os porta-vozes do Kremlin, ou o ex-presidente Medvedev, ameaçaram o Ocidente com o uso de armas nucleares, coisa nunca vista mesmo nos tempos da Guerra Fria. Ou seja, e em suma, estamos em guerra e não o sabemos; ou, pior do que isso, teimamos em negá-lo, julgando que o que acontece na Ucrânia ficará na Ucrânia, num negacionismo da guerra em tudo semelhante ao climático ou ao da última pandemia. Infelizmente, o Presidente eleito da América e o seu séquito de incompetentes parecem viver na mesma e criminosa ilusão, acreditando que o “isolacionismo” e o “proteccionismo” conseguirão protegê-los dos males de um mundo hoje irreversivelmente globalizado.
Como escreve no seu último livro o historiador Simon Sebag Montefiore, vivemos actualmente em democracias de conforto, nas quais o sucesso eleitoral e até a legitimidade dos governantes dependem dos níveis de bem-estar que estes consigam proporcionar. Se tal não acontecer, e como agora estamos vendo, muitos dispõem-se a trocar a democracia pelo conforto e a liberdade pelo consumo, mergulhando a cabeça na areia e negando tudo quanto possa pôr em causa um estilo de vida que, por muito que não queiramos ver, é insustentável a todos os níveis, desde logo porque não produzimos o suficiente para o manter, sobretudo no confronto com outras nações mais aguerridas e atrevidas, com a China e a Índia à cabeça.
Mais do que testemunhar sobre o passado, pessoas como Shigeko Sasamori chamam-nos à realidade do presente, e, por isso, é muita pena que morram.
Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia