Jornalismo cultural, o que é?
A notícia da perda de alguém a que nos liga a cumplicidade que a crítica de cinema pode envolver traz memórias fortes e contrastadas. Assim, a morte de Augusto M. Seabra, nesta quinta-feira, contava 69 anos, remete-me para o tempo antigo (há mais de 40 anos, quero eu dizer) de um mercado cinematográfico pleno de contrastes motivadores, ainda não afogueado por um marketing agressivo capaz de contaminar o próprio labor jornalístico.
Lembro-o a contribuir de modo decisivo para a perceção de Hitler: Um Filme da Alemanha, de Hans-Jürgen Syberberg, em 1979, no Festival da Figueira da Foz. E penso no dossier, por ele coordenado, sobre E.T., o Extraterrestre, de Steven Spielberg, tema de capa na revista do semanário Expresso por alturas do Natal de 1982 - a estreia portuguesa ocorreu no dia 17 de dezembro. Aí se refletia uma interessante conjuntura de exibição, incluindo o lançamento simultâneo de vários títulos provenientes daquilo que, de modo eventualmente discutível, ainda podia ser designado como “Nova Hollywood”. Na mesma data, por exemplo, surgiu também nas salas o maravilhoso They All Laughed/Romance em Nova Iorque, de Peter Bogdanovich.
A sua conceção refletia uma relação com o mundo do cinema alheia a qualquer preconceito enraizado nas origens geográficas de cada filme. Apesar disso, talvez precisamente por causa disso, houve quem manifestasse o seu desagrado: a evidência dada ao conjunto de filmes liderado por E.T. seria uma cedência às “americanadas” (sic) da época. Com um pormenor a ter em conta: tal desagrado provinha do interior do espaço jornalístico.
Aprendi uma lição muito simples: não faz sentido definir aquilo a que damos o nome de jornalismo cultural como um mero “posto de observação” das atividades ditas culturais. Qualquer modo jornalístico é parte integrante da própria vida cultural de uma comunidade e de um país; conscientemente ou não, existe nos cenários de uma guerra (cultural, precisamente) em que não se trata de aniquilar o “inimigo”, mas sim de enfrentar as matrizes de pensamento que nos aproximam e afastam.
Não é fácil evocar tudo isto sem atrair uma avalanche de equívocos e muita má fé, até porque manifestações do mesmo antiamericanismo primário persistem em pessoas que nem sequer tinham nascido quando se estreou o filme de Spielberg. Não tenho ilusões sobre a (im)possibilidade de estabelecer qualquer diálogo motivador sobre o assunto, já que uma parte significativa dessas pessoas é indiferente à pluralidade da escrita, fixando-se nas malfadadas estrelinhas que o crítico A ou B atribui ao filme X ou Y…
O que Vicente Jorge Silva e Augusto M. Seabra desenvolveram naquele contexto foi um modelo de intervenção jornalística cuja pertinência persiste (a sua prática, felizmente, não desapareceu da comunicação social). A saber: o trabalho crítico sobre as formas de expressão artística está muito longe de se esgotar na classificação das obras em “boas” ou “más”, antes nasce do desejo de observar e, se possível, compreender como é que essas obras se inscrevem no tempo em que surgem. E também como é que esse tempo e o seu labirinto de ideias, valores e perplexidades marca o respetivo labor narrativo, iconográfico e simbólico.
Havia (e há) nessa forma de pensar o jornalismo algo que, todos os dias, passou a ser violentado pelo simplismo cognitivo do populismo televisivo, contaminando todas as estruturas políticas e sociais. De que se trata, então? De conceber a dinâmica cultural como um elemento transversal a todos os domínios da sociedade. Ou dito em termos jornalísticos: de trabalhar no sentido de favorecer uma perspetiva cultural, não apenas das atividades artísticas, mas também sobre a política, a economia e todos os territórios que contribuem para definir a nossa identidade, seja ela individual ou coletiva. O legado de Augusto M. Seabra começa na defesa da necessidade, a meu ver da urgência, desse trabalho.