Opinião
10 setembro 2021 às 12h11

Jorge Sampaio

Luís Castro Mendes

Que je meure au combat ou meure de tristesse

Je rendrai mon sang pur comme je l"ai reçu

(Corneille, Le Cid)

De quem tanto representou das esperanças da minha geração, só posso falar na primeira pessoa. Jorge Sampaio foi sempre aquela luz bruxuleante de dignidade e coerência a atravessar a vida política do nosso tempo. Mesmo quando dolorosamente estive em desacordo com os seus atos (aquando da saída de Durão Barroso e da decisão, tomada com toda a angustiada ponderação que o caraterizava, de nomear Santana Lopes e não convocar eleições), nunca deixei de ver nele o exemplo de inteireza moral que me impressionou desde a primeira vez que o vi.

Conheci-o quando fui testemunha no Tribunal Plenário de Lisboa de um colega meu de Faculdade, acusado de atividades subversivas. Sampaio era o advogado de defesa e foi decidido que as jovens testemunhas como eu visitassem o advogado, para se prepararem. Jorge Sampaio, ao reconhecer em mim o filho de juiz, disse "por certo, seu pai não aprovaria que uma testemunha se entendesse antes do julgamento com o advogado de defesa", ao que respondi que meu pai me ensinara que os tribunais plenários não eram verdadeiros tribunais. Ali encontrei o homem corajoso e batalhador, mas sempre preocupado com o rigor formal e institucional das suas ações.

Mais tarde, durante a Revolução, a ligação política já cimentada na CDE de Lisboa em 1973 levou-me a ser algo como um "go between" entre Melo Antunes e o Grupo dos Nove e o grupo do Jorge Sampaio no MES. Fui frequentador dos almoços do Florida e fundador do GIS, abandonando, pela dupla influência de Melo Antunes e de Jorge Sampaio, os ideais trotskistas em direção ao socialismo democrático (não deixando de enfrentar suspeitas de César Oliveira de trazer ao grupo infiltrações trotskistas).

Jorge Sampaio, João Cravinho, Luís Nunes de Almeida, Nuno Brederode Santos, Joaquim Mestre, José Manuel Galvão Teles, Nuno Portas, João Bénard da Costa - como avaliar o privilégio de um jovem de vinte e quatro anos em ouvir tais mestres da política no auge de uma Revolução, em almoços e reuniões, de que fui atento escriba e permanente elemento de ligação com Melo Antunes e os militares? Alguns dos meus melhores amigos para a vida estão entre aqueles nomes.

Em 1977 eu era já diplomata, colocado na embaixada de Portugal em Luanda, quando me foi dado votar a dissolução do GIS e tomar a opção (ou não) de aderir ao PS. Votei favoravelmente as duas, mas não aderi então ao PS.

Jorge Sampaio, sempre coerente com o seu rigor formal e institucional, explicou-me então que o meu estatuto de diplomata não me impedia certamente de ter uma opção política nem de me inscrever no partido - mas enquanto diplomata no ativo, estar-me-ia vedada a militância partidária. Para quê então aderir? E não o fiz então.

Mas o sampaísmo no Ministério dos Negócios Estrangeiros era uma poderosa corrente subterrânea, que me ligava a colegas ilustres como Francisco Seixas da Costa, José Filipe Morais Cabral, José Freitas Ferraz, João Pimentel, Ana Gomes, numa espécie de "think tank" secreto (ou melhor, discreto) que apoiava o pensamento estratégico internacional de Jorge Sampaio, importante faceta do seu perfil político. Trabalhar com ele era o prazer de ouvir uma inteligência a elaborar, pela dúvida permanente e o rigor atento, um pensamento e um guia para a ação.

Não vou aqui falar das relações entre o cônsul geral, depois embaixador, e o seu presidente. A minha recordação forte do Jorge é fora do quadro institucional, é dos tempos febris da Revolução, é da viva imaginação intelectual e do sólido rigor moral que um homem que representava o melhor da geração acima da minha soube trazer duradouramente à vida política portuguesa.

Dizer adeus a Jorge Sampaio é dizer adeus ao nosso tempo e à nossa juventude. Com a certeza que ele guardou sempre, para além de todas as vicissitudes, o "sangue puro" do seu rigor moral.