Jogos de guerra

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A decisão de Joe Biden de autorizar a Ucrânia a utilizar mísseis de longo alcance norte-americanos para atacar alvos no interior da Rússia é uma decisão que aumenta a tensão com o Kremlin. Ao dar este passo, os Estados Unidos procuram reforçar a posição negocial da Ucrânia perante a Rússia, numa altura em que a vitória de Donald Trump nas recentes Eleições Presidenciais americanas tornam claro que, em breve, Kiev será forçada a ceder perante várias pretensões de Putin. No fundo, Washington tenta criar no campo de batalha as condições necessárias para que seja alcançada uma solução diplomática o mais favorável possível à Ucrânia, assim que Biden der lugar a Trump na Casa Branca.

A Rússia reagiu de imediato à decisão de Biden, com a promessa de que irá retaliar em conformidade contra os países que aprovarem a utilização destes mísseis em ataques contra o seu território. As opiniões dos analistas dividem-se, havendo quem interprete as ameaças nucleares de Moscovo como mais do mesmo, mas também há quem admita uma escalada da guerra. Não por acaso, os Governos da Suécia e da Finlândia, países vizinhos da Rússia, emitiram um conjunto de alertas aos respetivos cidadãos, aconselhando-os a prepararem-se para a eventualidade de uma guerra. Os cidadãos destes países escandinavos são aconselhados a armazenar bens de primeira necessidade que lhes permitam sobreviver sem ajuda exterior durante um mínimo de três dias.

Se se trata de exagero ou prudência, ninguém sabe verdadeiramente. Obviamente, a Rússia não terá interesse em atacar a NATO com armas nucleares, porque sabe que se o fizer será alvo de uma retaliação imediata, que a levará de volta à Idade Média em menos de uma hora. Obviamente, numa guerra nuclear não haverá vencedores, mas apenas vencidos. Obviamente, a maior parte da Humanidade morreria se ocorresse uma guerra que provocasse o temido “Inverno Nuclear” de que falam os cientistas. Obviamente, frisam os especialistas.

O problema é se, nos complexos militares dos Estados Unidos e da Rússia, houver quem acredite seriamente que as novas tecnologias, com mísseis hipersónicos e outras armas avançadas, tornaram inválido o velho conceito de Destruição Mútua Assegurada, que durante décadas manteve a paz entre grandes potências. E se, nesses estados-maiores, houver quem não acredite realmente na teoria do “Inverno Nuclear” proposta nos Anos 80 por Carl Sagan e outros cientistas.

Um dos aspetos mais curiosos em tudo isto é que a política americana parece estar ao contrário. Há dias, o jornal The New York Times, insuspeito de simpatias trumpistas, publicou um ensaio com o título When did liberals become so confortable with war? (Quando é que os liberais se tornaram tão confortáveis com a guerra?, em português, sendo a palavra “liberal” empregue no contexto norte-americano, que é o de alguém de esquerda). De facto, há 20 anos, o Partido Republicano era frequentemente associado ao complexo industrial-militar e às guerras do Iraque e do Afeganistão. Já uma boa parte do Partido Democrata era contra as “guerras eternas” e desconfiava das aventuras no estrangeiro.

Hoje é o contrário: o presidente democrata procura travar uma guerra de procuração com a Rússia, enquanto o candidato populista que tomou conta do Partido Republicano conseguiu vencer as eleições com um apelo ao velho isolacionismo americano e a promessa de acabar com a guerra “em 24 horas”.

O mesmo acontece no plano económico: o maior país comunista do mundo é o principal defensor do livre comércio à escala mundial, enquanto o presidente-eleito dos Estados Unidos, capitalista e republicano, apresenta-se como o campeão do protecionismo. As voltas que o mundo dá.

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