Já cá não está quem falou. Madeleine Riffaud (1924-2024)

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Às vezes, como sabemos, um chuto no rabo pode mudar uma vida, e essa vida mudada pode mudar outras tantas, as vidas de muitos, milhões. No limite, talvez até devamos agradecer ao oficial nazi que pontapeou Madeleine no traseiro, pois, sem esse gesto tão estúpido, tão gratuito, não haveria uma menina-heroína da Resistência Francesa e o mundo seria hoje muito diferente, ainda pior do que está.

O incidente ocorreu em Novembro de 1940 numa estação de comboios parisiense, quando Madeleine Riffaud acompanhava o avô doente numa viagem até Amiens, onde ambos iriam visitar o pai dela, que vivia numa terra próxima daquela cidade. Nascida em 23 de Agosto de 1924 em Arvilliers, na região do Somme, uma terra povoada de memórias sangrentas da Primeira Guerra, filha de dois professores, Madeleine tinha então 16 anos. Na gare ferroviária, um grupo de soldados alemães meteu-se com ela e, em face do burburinho, um oficial mandou-a sair dali, afastando-a à bruta com um pontapé no rabo, o que a fez estatelar-se no chão e dar de caras com uma sarjeta. “Esse episódio mudou a minha vida”, diria ela numa entrevista ao The Times, em 2006. “A humilhação transformou-se em sede de vingança”.

A partir desse instante, Madeleine tudo fez para aderir à Resistência, o que só aconteceria tempos depois, quando estava a tratar-se de uma tuberculose no sanatório estudantil de Saint-Hilaire-du-Touvet, em Isère (no caminho para lá, hospedou-se num hotel em Grenoble, onde o filho da sua senhoria de Paris, que a acompanhava no percurso supostamente para a proteger, a violou repetidamente - quatro vezes numa noite).

No sanatório, conheceu um núcleo de resistentes que aí tinham uma tipografia clandestina onde imprimiam atestados médicos falsos para que os judeus lá pudessem ser internados, escapando a uma morte certa. Aí conheceu também um homem admirável, discretíssimo, Daniel Douady, o director do sanatório, que possuía a única chave de acesso à tipografia e que assinava os atestados salvíficos, mas que até ao fim da vida jamais falou destes seus gestos heróicos, morrendo muitos anos antes de Madeleine evocar o seu nome no livro de memórias que deu à estampa em 1994. Intitulam-se estas On l’appelait Rainer, o nome de código que adoptou na Resistência em homenagem a Rainer Marie Rilke, cuja poesia conhecera no sanatório.  

Tinha 18 anos quando entrou nos subterrâneos da liberdade, e nunca mais os abandonou. Trilhou-os com uma força interior inaudita e com assombrosa coragem, a ponto de ter merecido dos seus camaradas o epíteto glorioso de “a rapariga que salvou Paris”. Integrada nas guerrilhas comunistas dos Franc-Tireurs et Partisans, participou em centenas de missões de altíssimo risco, no transporte de mensagens e de resistentes perseguidos pelos nazis, ou na complexa logística de operações de sabotagem. Uma vez, incumbiram-na de entregar uma chave de parafusos especial a um ferroviário para que este sabotasse as linhas de caminho-de-ferro; noutra, atirou-se desarmada sobre um soldado alemão, quando este se preparava para alvejar o estudante de medicina Jean Roujeau, que distribuía propaganda clandestina à frente da Livraria Gibert, no Quartier Latin.

Mostrada a fibra que tinha, deram-lhe uma tarefa suicida, para qual, aliás, ela se voluntariou: em 23 de Julho de 1944, atravessou Paris de bicicleta, transportando consigo uma pistola roubada, e, na Ponte Solférino, ao acercar-se do Jardim das Tulherias, viu um oficial alemão, fê-lo parar e deu-lhe dois tiros na cabeça, pum, pum, matando-o de imediato. “Caiu à minha frente como um saco de trigo”, diria anos depois, sem sinais de arrependimento ou remorso. A morte de um nazi, qualquer um que fosse, havia sido determinada como retaliação pelo abominável massacre de 643 habitantes de Oradour-sur-Seine, uma terra que Madeleine conhecia bem, pois aí passava as férias na infância, o que talvez explique a frieza do seu acto e a eficácia letal com que desempenhou aquela missão homicida.

Descoberta pelo chefe da polícia de Versalhes, um colaboracionista, foi por este atropelada, imobilizada e levada à sinistra sede da Gestapo, na Rue des Saussaies, onde foi torturada barbaramente durante três semanas a fio, sem nunca quebrar. Depois, transferiram-na para a Prisão de Fresnes, onde os nazis guardavam, em condições indescritíveis, os agentes ingleses do Special Operations Executive (SOE) e os membros da Resistência Francesa. Chegou a estar escalada para o pelotão de fuzilamento, mas foi salva no derradeiro minuto por um polícia francês, o mesmo que, semanas antes, deixara que ela lhe furtasse a arma com que matara oficial alemão. Em Fresnes, e a partir da cela, testemunhou cenas macabras, como a de uma mulher a quem amputaram os seios à frente do marido, sendo este logo a seguir castrado, ou a de um jovem espancado até à morte com barras de ferro. Incorporada no famigerado “comboio dos 57.000”, rumo a Buchenwald e a Ravensbrück, foi salva por uma companheira de infortúnio, que a fez saltar da carruagem em movimento.

Novamente capturada, acabou sendo libertada numa troca de prisioneiros mediada pelo cônsul da Suécia, Raoul Nordling. Como se adivinha, regressou de imediato à acção e, nos combates da Libertação de Paris, destacou-se na captura de 80 soldados da Wehrmacht que viajavam num comboio de abastecimentos, operação digna de ser contada: a golpes de granada e fogo-de-artifício, Madeleine e mais três camaradas conseguiram imobilizar o comboio quando este atravessava uma ponte, obrigando-o a buscar refúgio num túnel; depois, com o auxílio de um engenheiro aposentado, desmontaram a locomotiva da carruagem em que seguiam os nazis, deixando-a sequestrada no interior do túnel e obrigando à rendição dos seus ocupantes. A seguir a este triunfo, esteve nos árduos combates da Praça da República, o que lhe valeu ser promovida ao posto de tenente e receber a Cruz de Guerra com palma, em diploma assinado por Charles de Gaulle.

Após a Libertação de Paris, Madeleine e os seus camaradas continuaram a combater aos nazis nas regiões limítrofes da capital e noutras partes de França, só terminando no final da guerra, com a derrota definitiva da Besta. Na altura, ainda pensou entrar no Exército, mas ainda era menor e, como tal, carecia da autorização dos pais, que dificilmente lha dariam, pois o seu pai, Jean-Émille Riffaud, tornara-se um fervoroso pacifista após ter sido gravemente ferido nas trincheiras da Grande Guerra.

Nos primeiros tempos de liberdade, a ressaca do que vivera: o reavivar da tuberculose, perdas ocasionais de memória, lembranças recorrentes das atrocidades que presenciara, a “síndrome do sobrevivente”, que mais tarde tratará com os psicanalistas Serge Lebovici e Jean Kestemberg. Não tendo qualificações e emprego, quase resvalou na miséria, não fossem alguns trabalhos ocasionais, como um, arranjado por um amigo, de servir de modelo fotográfico e guia em Paris a um soldado americano negro da sua idade, Sammy Davis Jr.

Por intermédio de Claude Roy, que escrevera o seu perfil biográfico no semanário Action, conheceria Paul Éluard, que se apiedou daquela jovem destroçada e a tomou a seu cargo e da sua mulher. Éluard deu-lhe uma carta de recomendação para trabalhar no Le Soir, de Aragon, o que não veio a concretizar-se, e publicou alguns poemas seus na revista L’Éternelle, levando-a também ao ateliê de Picasso, que a retratou num desenho depois utilizado na capa do primeiro livro de poemas de Madeleine, expressivamente intitulado Le poing fermé (“O Punho Fechado”), e publicado logo em 1945, o ano em que casou com Pierre Daix, intelectual do PCF e sobrevivente do campo de Matthausen, do qual se separaria ao fim de dois anos de casamento, mas de quem teve uma filha, que seria criada pelos pais do marido até morrer prematuramente de tuberculose, doença que contraíra da sua mãe, que nunca se perdoou por isso.

Mais tarde, durante as décadas de 1950 e 1960, Madeleine faria a cobertura da guerra da Argélia para o jornal comunista L’Humanité, o que lhe valeu ser alvo de um atentado da OAS, que pouco antes a condenara publicamente à morte. Perto de Orão, o carro em que seguia teve um aparatoso acidente, ela ficou gravemente ferida, mas só pôde receber tratamento hospitalar quatro dias depois, já que, entretanto, teve os homens da OAS no seu encalço. Em resultado daquele desastre, perdeu a visão de um olho e ficou com a visão limitada no outro, entre outras sequelas e mazelas, mas nem isso a dissuadiu de cobrir a guerra do Vietname (conhecera Ho Chi Minh em Paris, em 1946), país onde permaneceu durante sete anos e onde se tomou de amores pelo poeta Nguyen Dinh Thi, que seria seu companheiro durante cinco décadas, até morrer em 2003.

Regressada a França, a doença da mãe fê-la conhecer de perto os hospitais gauleses e as duras condições de trabalho dos seus profissionais de saúde. Sob um nome fictício, “Marthe”, tornou-se auxiliar de enfermagem, experiência que lhe permitiu escrever um livro-denúncia logo convertido best-seller, Les lignes de la nuit, de 1974.

Só em 1994, com os 50 anos da Libertação, assumiu o papel que desempenhara no triunfo dos Aliados, algo que sempre resistira a fazer. “Recuso ser um símbolo. Fui apenas uma jovem rapariga apanhada no meio da História”. Apesar disso, recebeu a Legião de Honra, em 2001, e a Ordem de Mérito, em 2008, e tornou-se uma lenda viva: falou para jovens, prestou testemunho, concedeu algumas entrevistas televisivas, poucas, foi objecto de diversas biografias, algumas das quais em banda desenhada, e deu nome a duas escolas. Deixa também uma vasta obra, sobretudo no domínio da poesia e do conto.

Morreu com 100 anos, no passado dia 6 de Novembro, e, segundo a imprensa, não deixa sobreviventes conhecidos. Olhando como vai o mundo, disso não temos dúvidas.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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