Já ouviu falar da Linha Durand?

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Durante uma reportagem no Paquistão em 2001, cheguei várias vezes a ir à embaixada afegã em Islamabad ouvir as arengas do representante dos talibãs contra os americanos, que estavam a bombardear o Afeganistão em retaliação pelo 11 de Setembro. O Paquistão era um dos três países que tinham reconhecido o Emirado Islâmico fundado pelo Mullah Omar, de péssima fama desde o primeiro momento por ser tão fundamentalista que proibiu as meninas de ir à escola, e com uma reputação pior ainda desde os atentados contra as Torres Gémeas de Nova Iorque por dar guarida a Osama bin Laden e à Al-Qaeda.

Quando George W. Bush disse ao general Pervez Musharraf, homem forte do Paquistão, que não havia outra hipótese a não ser estar do lado dos Estados Unidos, não faltaram as notícias a dizer que estava desfeita a aliança tradicional dos paquistaneses com os seus vizinhos afegãos. Contudo, nada havia de tradicional nessa aliança. O Paquistão apoiava os talibãs desde os anos 1990 para manter influência no Afeganistão, tal como ao longo dos anos 1980 serviu de retaguarda aos grupos mujaedines que lutavam contra o regime comunista de Cabul e os seus aliados soviéticos. Com a Índia como inimigo a leste, sempre foi prioritário para o Paquistão ter um regime amigo na fronteira oeste. Chama-se a isso profundidade estratégica, algo muito importante para um país que já travou três guerras com a Índia desde que ambos os países nasceram em 1947 da divisão do Raj, a Índia Britânica.

Desde o regresso dos talibãs ao poder em Cabul em 2021, parecia que o Paquistão tinha recuperado o tal regime amigo, como que um regresso à suposta tradicional aliança entre os dois países vizinhos. Ainda por cima, nas duas décadas de tentativas de democratização do Afeganistão promovidas pelos Estados Unidos, a Índia tinha conseguido ganhar alguma influência nos círculos de poder em Cabul, sobretudo na presidência de Ashraf Ghani.

Tropas paquistanesas bombardearam agora dentro de território afegão os chamados talibãs paquistaneses. E chegou a haver trocas de tiros entre combatentes do regime talibã e soldados paquistaneses, gerando uma grave crise, que só não escalou mais graças à mediação da Turquia e do Qatar. Deverá haver esta semana um encontro em Istambul, na sequência de um outro em Doha, entre representantes dos dois países. Em causa está sobretudo a exigência ao Afeganistão para impedir que os talibãs paquistaneses usem o país vizinho para ataques terroristas ao Paquistão. Será uma exigência difícil de ter resposta efetiva imediata, e por várias razões: primeiro que tudo por serem tribos pastunes que vivem de um lado e do outro da fronteira, ainda por cima uma fronteira impossível de vigiar a 100%; em segundo lugar porque não é evidente que os talibãs que mandam em Cabul, agora chefiados por Hibatullah Akhunzada, mesmo que possuam capacidade para expulsar os talibãs paquistaneses, com que partilham a ideologia, tenham vontade disso, ainda que tentem manter alguma distância deles por razões de bom senso.

Voltemos à tão referida aliança tradicional entre o Paquistão e o Afeganistão. Que não é uma realidade histórica, pelo contrário. Quando muito é uma realidade intermitente. Em 1947, quando o Paquistão entrou na ONU, o único país que votou contra foi o Afeganistão, então uma monarquia liderada pelo rei Zaher Shah. Em questão a fronteira, a tal fronteira porosa, habitada em boa parte dela pelas etnias pastune e baluche de um lado e do outro. Uma fronteira também conhecida com Linha Durand, legado da era colonial.

Durand é o apelido do diplomata britânico, Sir Mortimer Durand, que negociou em 1893 com o emir Abdur Rahman Khan mais de 2500 quilómetros de fronteira entre o Raj e o Afeganistão. É uma linha que vai do Irão ao extremo ocidental da China, e que relembra que o Afeganistão se manteve independente por causa da resistência aos invasores mas também para servir de tampão entre os impérios britânico e russo na Ásia Central. Já este ano, o regime talibã voltou a dizer que não reconhece a Linha Durand, o que certamente não agradou a Islamabad. E também não terá agradado a Islamabad a visita já este mês do vice-chefe da diplomacia afegã à Índia.

Veremos se da reunião em Istambul sairá algo do agrado dos paquistaneses ou se o choque entre os vizinhos veio para ficar.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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