J.D. Vance nem sequer disfarça

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O que será da Ucrânia se Donald Trump ganhar em novembro? A acreditar no que explicou o seu candidato a vice, J.D. Vance, em entrevista ao podcast  “The Shawn Ryan Show”, o plano de uma futura Administração Trump passa pela promoção de uma espécie de zona tampão, supostamente desmilitarizada, em cima da atual linha de contacto na frente leste, que permitiria, na prática, que a Rússia ocupasse, pela via do congelamento do conflito, 20% do território ucraniano.

Vance mostrou-se sempre muito mais preocupado em atender às exigências da Rússia de Putin, ao deixar claro que a Ucrânia “teria de abdicar das intenções de entrar na NATO e em outras organizações do género” (não especificou se estava a referir-se à UE). O senador J.D. do Ohio foi particularmente insistente nesse ponto: “A Ucrânia teria de aceitar a neutralidade.”

Ver J.D. Vance nessa entrevista faz-nos ficar com muito poucas dúvidas: o foco da candidatura Trump estará em responder a grande parte das exigências de Putin, sob a capa de serem os promotores da paz no Leste da Europa. A grande vítima será a soberania e a integridade territorial da Ucrânia.

O mais irónico é que J.D. Vance até se referiu, nessa entrevista, à soberania da Ucrânia. O problema é que, por omissão, e se atendermos, ao pormenor, ao que o candidato a vice de Trump propõe, fica implícito que Vance entende “a soberania da Ucrânia” como o que restará do congelamento decorrente do acordo que Donald Trump promoveria (imporia?) aos ucranianos.

Ou seja: a Ucrânia continuaria a existir, sim, mas com cerca de 80% do que é hoje. Tudo isto com o beneplácito de uma futura Administração Republicana em Washington.

Em contrapartida, a Ucrânia receberia garantias de que a Rússia não atacaria para lá da tal buffer zone desmilitarizada, através de uma suposta fortificação (que J.D. Vance nem sequer se preocupou em tentar explicar, apesar da aparente contradição que parece ser a de fortificar uma zona desmilitarizada).

Ucrânia como um “problema europeu”

A toda esta lógica proposta por J.D. Vance preside uma ideia especialmente preocupante para nós, europeus: a de que a agressão russa da Ucrânia “é um problema essencialmente europeu”. “Trump sentaria russos, ucranianos e europeus e diria: vocês, rapazes, têm de encontrar uma forma de chegar ao acordo de paz. Perceber como poderá ser esse acordo de paz e entenderem-se”, insistiu Vance.

É preciso ter a verdadeira noção do que isto pode representar.

Até agora, o apoio dos EUA tem sido absolutamente crucial para a resistência ucraniana. Trump e Vance preparam-se para remeter a questão para a responsabilidade da Europa - sabendo que isso poderá provocar a primeira grande divisão entre os países da UE, desde 24 de fevereiro de 2022.

Como reagiria a Alemanha de Scholz a esta espécie de “paz miserável”, em forma de capitulação da Ucrânia? Enfraquecido internamente, a ver a extrema-direita e também a nova extrema-esquerda, ambas pró-russas e antiajuda à Ucrânia, a crescer perigosamente, o chanceler alemão fala em “começar a reduzir o apoio militar a Kiev” e em “acelerar as condições para um futuro acordo que trave a guerra”. Scholz até falou, recentemente, na necessidade de “voltar a falar com Putin, quando isso surgir como possível”.

Seria um “acordo Trump” a primeira grande fratura entre Berlim e Paris no que toca à proteção da Ucrânia? Putin e Trump sabem que 2025 será um ano de Eleições Legislativas numa Alemanha em crise política, económica e social.

Em França, Macron - que pretendia assumir-se como o grande esteio europeu da travagem da ameaça russa - poderia voltar a ter uma oportunidade de emergir como o grande defensor da Democracia Liberal no espaço europeu, perante o avanço da autocracia imperialista russa. Só que, desta vez, sem respaldo de Washington - como até agora teve com Biden e Blinken -, ainda mais divorciado de Berlim e com um profundo problema político interno (basta ver como a sua solução Barnier para Matignon tem tudo para criar mais problemas que soluções).

E Trump: concorda mesmo com Vance?

Nunca se sabe muito bem o que Donald Trump realmente pensa.

O que para outros seria visto como flip-flop, pensamento errático ou indefinição inaceitável, para ele surge como vantagem estratégica: a todo o momento pode decidir uma mudança de posição, em função das necessidades momentâneas.

Trump tem repetido que, com ele na Casa Branca, “a guerra na Ucrânia terminava em 24 horas”. Ora, essa afirmação parece sustentar o plano antecipado por Vance - forçar a Ucrânia à cedência dos territórios ocupados, levar Putin a parar uma agressão mais generalizada a outras áreas ucranianas.

Ainda que com nuances a acertar, o que parece estar a desenhar-se, no caso de Trump vencer em novembro, é uma espécie de conjugação entre esta via de “buffer zone” na linha de contacto com outros planos mais generalistas, como o da China ou o do Brasil - todos, em traços gerais, apontam para uma paz baseada na cedência da Ucrânia e na premiação do invasor pela agressão feita.

As consequências para a estabilidade internacional são inimagináveis. São mesmo. A partir daí, os países mais fortes que desejem tomar partes dos vizinhos mais fracos sentir-se-ão legitimados a ousar uma agressão.

A China está, obviamente, atenta. E Taiwan tem fortes razão para estar preocupada.

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