A Alemanha continua a ser a locomotiva da Europa a 27 mesmo que a sua economia só agora comece a dar sinais de recuperação depois dos impactos sucessivos da covid-19 e da guerra na Ucrânia, com esta última a levar a sanções contra a Rússia que afetaram uma indústria alemã habituada a contar com o gás russo. As previsões para 2026 são de crescimento, o que é boa notícia não só para os alemães, mas também para os parceiros europeus em geral e, claramente, para Portugal. Só a Espanha conta mais em termos de trocas comerciais. Quanto a investimentos, a presença germânica por cá é antiga, fortíssima e diversificada.Como sublinhou a embaixadora Daniela Schlegel, em entrevista publicada na edição de terça-feira do DN, existem “cerca de 720 empresas alemãs em Portugal, que criam cerca de 85.000 empregos diretos, representando até 12% do PIB”. Um leque que vai da AutoEuropa ao Lidl, passando por Bosch, Mercedes, Lufthansa ou SAP. Mas não é só a economia, mesmo que a Alemanha tenha a terceira maior do mundo, que explica o estatuto de locomotiva da UE. Também se trata do país mais populoso, um dos fundadores da CEE em 1957 e tradicionalmente um dos mais convictos nas vantagens de uma Europa unida. “Não devemos nos esquecer de que a integração europeia é uma história de sucesso única. É realmente difícil imaginar como seria a nossa vida sem a União Europeia no que diz respeito à livre circulação, educação, ciência, investigação e mercado interno”, afirmou a embaixadora Schlegel, na citada entrevista. E admitindo, claro, que o seu país tira dessa integração europeia múltiplas vantagens, aliás a razão porque aceitou na viragem do século trocar o marco pelo euro: “Nós, como Alemanha, também dependemos muito das exportações para a UE”.Se trocarmos a palavra locomotiva por liderança, o protagonismo alemão mantém-se. O Brexit, mesmo que o Reino Unido nunca tenha estado a 100% no processo de construção europeia, deixou ainda mais evidente a falta de alternativas ao eixo franco-alemão. Mas, em Paris, o presidente Emmanuel Macron está a ano e meio de sair, após dois mandatos que ficaram aquém das perspetivas, e os primeiros-ministros sucedem-se por falta de uma maioria governamental clara que os suporte. Em contraste, em Berlim, o chanceler Friedrich Merz conseguiu este ano repor os democratas-cristãos no poder, depois da derrota partidária que se seguira à saída de cena de Angela Merkel, e construir uma Grande Coligação com os sociais-democratas que garante estabilidade governativa apesar da força dos partidos extremistas à esquerda e, sobretudo, à direita, e da impopularidade que as sondagens mostram.O alemão Merz tem, pois, condições para se assumir como a principal voz europeia num mundo em que o americano Donald Trump, o chinês Xi Jinping e o russo Vladimir Putin querem pôr e dispor, ignorando a UE o mais possível. É uma missão complicada, até porque não é clara a estratégia do aliado americano. A boa relação pessoal que parece existir entre Merz e Trump é importante, mas sobretudo o compromisso do novo governo alemão com o investimento em Defesa, em linha com o defendido por Washington, joga a favor do chanceler. Até porque é preciso saber fazer compromissos. Recordo aqui aquilo que disse a embaixadora sobre a relação com os Estados Unidos: “As relações transatlânticas são de fundamental importância para a Alemanha, e as relações com os Estados Unidos são importantes para a Alemanha e para a Europa. A Europa precisa dos Estados Unidos para a sua segurança, mas tivemos que aceitar que o foco dos Estados Unidos está a deslocar-se mais para o Indo-Pacífico, onde existem muitos desafios que também podem ameaçar a nossa própria segurança. Portanto, a Europa precisa ser mais resiliente e investir mais na sua própria segurança. Assim, o nosso objetivo é ter um pilar europeu forte dentro da NATO. O pilar europeu não substituirá a NATO, mas será um reforço à NATO, pois a NATO é a única organização e o alicerce que garante a nossa segurança”.Depois de conhecer o novo documento americano sobre estratégia de segurança nacional, Merz reagiu de forma contida, embora a ideia de “América primeiro”, as criticas à forma como as sociedades europeias evoluem e a vontade de encontrar com a Rússia uma saída a toda a velocidade para a situação na Ucrânia não tenham caído bem em Berlim. A Alemanha, tal como os 27 no seu todo, quer continuar a contar com os Estados Unidos. É o que faz sentido.Faz sentido e vem na linha do que disse, também numa entrevista ao DN, na semana passada, João Vale de Almeida, português que foi chefe de gabinete de Durão Barroso na presidência da Comissão Europeia e embaixador da UE nos Estados Unidos, nas Nações Unidas e no Reino Unido. Alertava o autor de O Divórcio das Nações que “não devemos desistir da América de forma irresponsável e precipitada. É cedo demais para desistir da América. Porque temos tido as tais oscilações nos últimos 25 anos, e eu não sei quem é que se vai seguir a Trump. A América não vai ser nunca mais o que era antes, no sentido de ser o polícia do mundo, de estar aberta, no fundo, a salvaguardar a segurança da Europa. Não tenhamos ilusões, não voltará a ser como era, mas não será necessariamente como é atualmente. Portanto, do meu ponto de vista, do ponto de vista europeu, não devemos desistir da América. Não podemos dar-nos ao luxo de desistir da América e não parece que a América esteja já num ponto de situação em que desistiu também da Europa. Portanto, temos de gerir isto com inteligência e resiliência”.É isso que se espera dos líderes europeus, inteligência e resiliência. Um desafio para Merz, pois lidera a Alemanha, a locomotiva continental. O apoio à Ucrânia, de que Berlim não abdica, terá de ser gerido em função do interesse dos 27 como um todo e concertado com os Estados Unidos.Diretor adjunto do Diário de Notícias