Imprevisão
Era a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, directora do FMI quando lhe perguntaram numa entrevista qual tinha sido a sua “maior desilusão” nos primeiros 18 meses do programa da troika. Na resposta, Lagarde mencionou “o facto de não termos previsto a inconstitucionalidade de medidas propostas”. A entrevista é publicada nos primeiros dias de 2013 e ela está portanto a referir-se ao corte dos subsídios de Natal e de férias a pensionistas, em geral, e trabalhadores do sector público. E o semanário, claro, deu destaque : “Maior desilusão foi não prever o chumbo do Constitucional.”
Neste prazo de oito dias que decorre desde a chegada a Belém do decreto da Assembleia da República com as alterações celeremente introduzidas no regime da imigração – em que é suposto o Presidente da República debruçar-se sobre a constitucionalidade de cada uma das inovações – será difícil, na memória de muitos dos que então o ouviram, apagar o papel do actual titular nessa tão relevante “imprevisão”.
A história conta-se depressa. Perante a decisão do Presidente da República, à época Cavaco Silva, de não recorrer à fiscalização preventiva – caso em que o corte dos subsídios não teria chegado a aplicar-se – um pouco mais de uma vintena de deputados pediu ao Tribunal Constitucional que declarasse a inconstitucionalidade da norma que decretava o corte. Logo que a iniciativa foi conhecida, o agora Presidente, na veste de comentador, no seu espaço televisivo semanal, não só a criticou no plano político como invocou expressamente a sua condição de professor de Direito Constitucional para a proclamar inimaginável (“passa pela cabeça de alguém ?”) e irremediavelmente votada ao fracasso. Foi a respeito dessa iniciativa que soltou então o seu talvez mais célebre “isto não lembra ao careca!” – que continuamos hoje a ter à distância um ou dois cliques informáticos.
Enganava-se – ou, para usar a linguagem de Lagarde, “imprevia”. Contra a leitura de quem fazia uso da sua autoridade académica para o excluir, o Tribunal Constitucional considerou, por larga maioria ( 9 contra 3) que a medida violava a Constituição. E a ironia frequenta mesmo esta história: foi relator do acórdão o actual Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Nalgumas das soluções que a conjunção PSD-Chega levou ao decreto agora sob exame – na convicção de muitos, na minha também – para lá doutros erros, há violação de normas e princípios constitucionais (igualdade e proporcionalidade, em primeiro lugar).
Será de esperar que o Presidente não repita, desta vez, a errónea apreciação em que se colocou em 2012 e observe os deveres que agora tem , com indicação ao Tribunal das normas que requerem fiscalização. Num dos debates da campanha presidencial em que o episódio do “não lembra ao careca” lhe foi lembrado, ouvimo-lo andar à volta dele, e até reescrevê-lo. Antes que o mandato termine, esta é uma oportunidade de ouro para não desperdiçar a experiência e resistir, agora, à imprevisão.
Registo de interesses: fui o primeiro subscritor do pedido que conduziu à declaração de inconstitucionalidade referida no texto.
Jurista, antigo ministro.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico