Imigração e Direitos Fundamentais: Poderá um pretexto abrir a porta a retrocessos?

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As recentes decisões do Tribunal Constitucional (TC) sobre a chamada Lei dos Estrangeiros debruçaram-se sobre um princípio basilar do Estado de direito: saber se os direitos, liberdades e garantias se aplicam a todas as pessoas independentemente da nacionalidade, salvo as exceções claramente previstas na lei. Ao declarar inconstitucionais algumas das normas propostas — com votos de vencido de alguns juízes — o TC entendeu que estas medidas violavam a proteção constitucional da família e o acesso efetivo à justiça.

É neste contexto que surgem apelos para uma revisão constitucional que “adapte” os direitos fundamentais à “realidade migratória” e, mais grave, à maioria sociológica representada neste momento no Parlamento. A história recente mostra que este é um terreno escorregadio e de consequências duradouras. Na Hungria, reformas justificadas para “proteger fronteiras” abriram caminho a restrições à liberdade de imprensa e à independência judicial. Na Dinamarca, leis mais duras para migrantes criaram precedentes que acabaram aplicados a cidadãos nacionais em matérias como vigilância e recolha de dados. E nos Estados Unidos, medidas excecionais aprovadas após o 11 de Setembro em nome da segurança, resultaram numa erosão prolongada de direitos de privacidade e garantias processuais.

Importa ainda recordar que a separação de poderes é um dos pilares de qualquer democracia funcional. O legislativo faz a lei, o executivo aplica-a e os tribunais interpretam-na e garantem que esta cumpre a Constituição. A independência do poder judicial — e, em particular, do Tribunal Constitucional — é a garantia de que nem maiorias parlamentares nem governos ocasionais podem moldar as regras do jogo democrático para seu benefício. Enfraquecer este equilíbrio é abrir caminho para uma concentração de poder incompatível com a democracia pluralista.

Por outro lado, mesmo uma revisão anunciada como sendo de alcance limitado criaria um precedente perigoso, normalizando a ideia de que é legítimo alterar direitos fundamentais para responder a crises conjunturais ou a pressões mediáticas. E criaria um ambiente de instabilidade constitucional insuportável, sujeitando a lei fundamental à vontade de cada maioria parlamentar, por definição sempre temporária. Acresce que, sendo necessário substituir cinco juízes do TC — eleitos pela Assembleia da República por maioria qualificada — um clima de polarização política à volta da Constituição poderia não só alterar o texto fundamental mas também condicionar a escolha de quem compõe o Tribunal, enfraquecendo o seu papel de guardião da democracia.

Ninguém nega que a imigração coloca desafios reais à sociedade, como a gestão de fronteiras, a integração social ou a pressão sobre serviços públicos, mas não justifica um aligeirar dos padrões constitucionais. A Constituição existe para resistir a soluções imediatistas que, para responder a um problema momentâneo, corroem direitos que protegem toda a comunidade.

A Constituição da República Portuguesa é uma das mais avançadas e equilibradas do mundo democrático: filha do nosso regime político relativamente recente e da integração internacional de Portugal em organizações como a UE, o Conselho da Europa ou a ONU, é um património jurídico e político que não deve ser alterado ao sabor de conjunturas ou pressões momentâneas. Cabe aos responsáveis políticos, à sociedade civil e aos órgãos de soberania preservar a arquitetura constitucional que garante o equilíbrio de poderes, a proteção de todos e a resistência contra maiorias ocasionais. Porque numa democracia madura, os direitos fundamentais não se moldam ao vento das crises e conjunturas. Sustentam-se, mesmo contra elas.

Professor Convidado IEP/UCP e NSL/UNL

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