História de proveito e exemplo

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Até ao 25 de Abril, os juízes - juízas eram inadmissíveis! - eram recrutados no Ministério Público, que representava, para a carreira judicial, uma fase prévia obrigatória. No Congresso Pró-democracia de 73, para além da defesa do acesso das mulheres, foi repudiada essa forma de recrutamento dos juízes: não só os agentes do Ministério Público adquiriam “uma visão deformada dos arguidos, pelo exercício prolongado das funções de acusadores públicos”, como essa solução só fazia avultar “a falta de preparação noutros ramos do direito”. O recrutamento dos juízes deveria, pois, alargar-se, “admitindo-se o acesso de outros técnicos do direito, como advogados, juristas, professores”, por concurso a decorrer perante um Conselho - para o qual já se avançava também um nome (prenunciando o que assomaria na Constituição de 1976).

Neste meio século de democracia, acabou por ser por longo tempo menosprezado este propósito diversificador, com ganho de causa para o conservadorismo corporativo. Fico-me hoje por um exemplo - outros virão depois.

Foi só na primeira Revisão Constitucional (1982) que se baniu expressamente a ideia dum Supremo Tribunal de Justiça como um “tribunal de carreira” - o que numa perspetiva corporativa sempre se vê nele. Passou a ser exigência da Constituição que estivesse aberto não só a juízes dos tribunais judiciais (não, necessariamente, apenas aos desembargadores) como a procuradores e outros “juristas de mérito” (advogados, professores de direito, etc.). Estar-se-ia assim, agora, em consonância, quanto ao Supremo, com o propósito assumido em 73, mas omisso em 76.

Ao longo das décadas seguintes, sempre me impressionou que estes outros “juristas de mérito” se tivessem tornado invisíveis, ficando o mérito representado no Supremo apenas por meio de carreiras de juízes e procuradores, em desfiguração clara da visão constitucional. Do momento em que a Constituição o previu até à segunda década deste século, julgo não errar se disser que só uns 2 ou 3 “juristas de mérito” lá terão entrado (um deles, aliás, ex-magistrado). A desfiguração constitucional foi operando através de um singular sistema de quotas no acesso ao STJ, onde as vagas previstas para os “outros juristas de mérito”, acabavam distribuídas, quando não fossem preenchidas, pelos candidatos já protegidos pela existência das outras quotas, mais numerosas aliás (juízes e procuradores).

Estando fora do horizonte, em 2005/2006, uma revisão constitucional que versasse o ponto, o que podia passar à prática no horizonte próximo era a exclusão legal do preenchimento por juízes e procuradores da quota prevista para “…outros juristas de mérito” - e, por outro lado, um alargamento dessa quota, comparativamente baixa.

O acordo com o PSD foi sucedido, também, nesta matéria, conseguindo atingir-se consenso quanto à elevação da quota desses “juristas de mérito” para um quarto. Mas estava-se então em setembro de 2006: considerando que no setor judicial “a crispação tinha passado”, o Presidente Cavaco Silva viu nessa mudança um potencial “fator de tensão com as magistraturas”, aduzindo, entre outros, o argumento de que já havia outros pontos de que os magistrados “não iriam gostar”.

De início o primeiro-ministro, e de seguida também eu, em ponderação racional de todas as matérias em causa, acabaríamos por aceitar o adiamento dessa mudança (a eliminação do alargamento acordado era bem acolhida do lado do líder do PSD). A concreta melhoria então introduzida saldou-se, por isso, no impedimento expresso das vagas previstas para “juízes de mérito” continuarem a ser, como até aí, preenchidas por juízes e procuradores.

O previsto e acordado aumento no sentido de um quarto dos juízes do STJ provirem do exterior da magistratura - um dos pontos em que se revelou importante a participação, pelo PSD, de Paulo Rangel - desapareceria, deste modo, do que veio a ser conhecido por “Pacto da Justiça”. Mas a introdução da novidade legislativa, em 2008, veio, mesmo assim, abrir um outro capítulo numa história longa de resistência à mudança, agora diante de uma inevitável admissão periódica de novos perfis no STJ. Um ensaio de pluralização que só vários anos depois, no termo de uma longa saga pós-legislativa, se converteu em realidade - que infelizmente ainda há pouco era vista por alguns sobretudo como fonte de problemas.

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