Hiroxima, uma lição de vida

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O okonomiyaki, também conhecido como panqueca japonesa, não é um prato exclusivo de Hiroxima, mas é nessa cidade que mais restaurantes especializados há, com uma tradição culinária que ganhou fama no Japão e fora dele. O okonomiyaki já se cozinhava antes da Segunda Guerra Mundial, e até há quem diga que tem séculos, mas em Hiroxima foi o prato de subsistência para muita gente depois da explosão atómica de 6 de agosto de 1945, faz hoje 80 anos.

A bomba lançada pelos Estados Unidos, seguida três dias depois por outra em Nagasáqui, forçou o imperador Hirohito a ir aos microfones da rádio anunciar a rendição. Mas se a guerra acabou finalmente na Ásia, o rasto de destruição da primeira bomba atómica deixou não só dezenas de milhares de mortos (80 mil de imediato em Hiroxima, 40 mil em Nagasáqui, e um total de quase 200 mil calculado décadas depois), e incontáveis feridos, como uma multidão de sobreviventes desesperados por teto e comida. A famosa panqueca, na realidade uma fina porção de massa à qual se acrescentam por camadas couves, noodles, e o que mais houver que dê sustento, tornou-se a comida possível. Com o tempo, à medida que a cidade e o país eram reconstruídos, o okonomiyaki ganhou carne e até peixe e marisco, algo que há em abundância na região de Hiroxima, muito conhecida pelas suas ostras.

O okonomiyaki que provei quando visitei a cidade deixou-me uma bela memória. Era saborosíssimo. Foi uma das versões ricas. Como rico se tornou o Japão depois de deixar para trás o passado imperialista e dedicar-se ao desenvolvimento da economia. Da década de 1950 à de 1970, muito se falou de milagre japonês. Um povo derrotado, um país submetido graças a uma arma de poder destrutivo sem paralelo na história, conseguia reconquistar um lugar na comunidade internacional, um lugar à altura da sua civilização plurimilenar. E tudo isto sendo uma democracia, como foi imposto pelos ocupantes americanos no pós-1945, mas depois se tornou convicção nacional.

O okonomiyaki representa, à sua maneira, o espírito de sobrevivência dos japoneses. Tal como o representa o Castelo de Hiroxima, datado do século XVI e totalmente arrasado pela bomba Little Boy, lançada do bombardeiro Enola Gay, mas entretanto reconstruído. Ou a fábrica ultramoderna da Mazda, que visitei em 2017, herdeira da empresa fundada em 1920 por Jujiro Matsuda e que a 6 de agosto de 1945 desapareceu em questão de minutos. O grande símbolo do bombardeamento permanece a Cúpula Atómica, um edifício de betão construído no início do século XX para centro de exposições e que milagrosamente se manteve de pé. Até hoje é um Memorial.

Que os japoneses tenham sido capazes de recuperar das bombas atómicas não nos deve deixar menos preocupados com elas, até porque as suas sucessoras, as bombas nucleares são ainda mais destrutivas. Hoje fala-se demasiado de armas nucleares, e de tensão nuclear, e de guerra nuclear. Leia-se os relatos dos sobreviventes de Hiroxima e de Nagasaki, os hibakusha, e perceba-se que há o horror da guerra e ainda o horror do pós-guerra.

Um dia entrevistei em Fátima o bispo de Hiroxima, D. Alexis Mitsuru Shirahama. Sobre os habitantes de Hiroxima, descendentes daquelas que sobreviveram à bomba, netos e bisnetos daqueles que tinham o okonomiyaki como o prato que lhes matava a fome, disse o bispo: “Como a primeira cidade a ser bombardeada pela bomba atómica há um sentimento doloroso especial que nas outras cidades não há. Foi tão devastador o efeito do primeiro dia sentido por Hiroxima, quase 200 mil pessoas morreram por causa da bomba atómica. O sentimento em Hiroxima é de que não gostariam que outras pessoas tivessem o mesmo sofrimento que eles tiveram. E para este propósito não se pode estar calado acerca dos efeitos da bomba atómica, é preciso dizê-lo aos outros. Nós não podemos fazer muito, apenas contar às pessoas acerca do efeito terrível e apelar à paz. Hiroxima depois da Segunda Guerra Mundial construiu uma catedral, que se chama Catedral para a Paz Mundial, esse é o nome, reconhecida como património cultural da humanidade. Foi erguida para este propósito, promover a paz, e também para rezar pelas pessoas que sofreram por causa da bomba atómica.”

Visite Hiroxima. É uma lição de vida.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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