Hino Silencioso

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Herois da Linha, Povo Dread
Digras valentes e imortais
Levantai hoje de novo
Sem docu sou ilegal

Entre as macumbas da memória
Rapazis, obi kel voz
Dos bongós vindo a nós
Nhos manti coragi fitchado

Estas duas estrofes são as primeiras de Hino Digra, a música que abre o álbum "meia riba kalxa" (meias por cima das calças) de Tristany. Se as leram à sombra da ironia, desenganem-se. À boleia da melodia do hino nacional, o músico canta as condições reais de milhares de jovens, na periferia de Lisboa: vidas pouco representadas e afastadas do exercício de cidadania, provavelmente, consequência contínua e simbólica das políticas veiculadas em A Portuguesa.

Tinha pouco menos de vinte anos quando, pela única vez, assisti a uma discussão na sociedade portuguesa sobre a letra do Hino. Estávamos em 1997, e António Alçada Baptista, no discurso do Dia de Portugal de Camões e das Comunidades - a cuja comissão organizadora presidia -, sugeriu uma alteração na letra do hino. Alegou que, na versão actual, a letra não tem "nenhum eco no coração da juventude" e seria, até, civilizacionalmente desadequada.

Apesar dos seus setenta anos - não era, portanto, um jovem -, e de ser uma figura amplamente reconhecida, a sugestão foi repudiada por um largo espectro da sociedade portuguesa, ao ponto de conseguir recordar a única excepção: Eurico Figueiredo. O então deputado e psiquiatra afirmava a sua concordância com a alteração para "uma letra mais poética, mais virada para o amor" e "para a solidariedade entre os povos".

As declarações de Dino Santiago, no passado dia 6 de Janeiro, na conferência Deixar o mundo melhor, organizada pelo Expresso, vão no mesmo sentido das declarações de Eurico Figueiredo: "Já é tempo de termos um hino menos bélico" pois "os nossos filhos já não precisam disso e a nova emancipação já não pode ser territorial, que seja mental, espiritual e com amor.".

Ora, apesar do apelo de Dino ter sido amplamente divulgado, não me parece que tenha merecido a devida atenção. Temo que os principais protagonistas do debate público estejam a assobiar para o ar, a ver se passa, ou, então, a exercerem simples condescendência.

Há burburinho nas redes sociais, e aqui e ali alguma opinião mais tímida, normalmente contra a mudança de letra ou mesmo da própria discussão. Invariavelmente, a tese pela manutenção da letra recai no aborrecimento de, por vezes, ter de anunciar à contemporaneidade que não podemos avaliar o passado à luz dos nossos tempos.

Ora, do que pude estudar, um hino é o oposto dessa argumentação, sendo antes uma canção do seu tempo ou, pelo menos, de um certo tempo. Pelo que pude observar, o primeiro hino de Portugal data do início do século XIX, seguindo-se o hino da Carta Constitucional, oficializado em 1834, que antecedeu o actual.

A Portuguesa, oficializado em 1911, foi o que esteve mais tempo em vigor, perdurando até hoje. Não será que duas ditaduras, a participação numa primeira guerra mundial, uma segunda guerra mundial, uma guerra fria, uma guerra de libertação/colonial, uma Revolução, uma Constituição, a entrada em blocos internacionais, tudo isto não são já motivos suficientes que justifiquem uma actualização da letra?

Os mais saudosistas que não se preocupem. O hino actual ficará sempre na história, incluindo o atraso na sua revisão. E, de resto, uma comunidade coesa depende, assim tanto, de um hino?

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