Hemisfério Ocidental

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A Doutrina Monroe só ganhou esse nome mais tarde, mas nasceu do discurso do presidente americano James Monroe em dezembro de 1823 advertindo contra qualquer tentativa de interferência europeia no hemisfério ocidental. Na época, havia o receio de que os países da Santa Aliança, a coligação que tinha derrotado Napoleão, aproveitassem para tentar ajudar Espanha a recuperar as colónias perdidas, transformadas em repúblicas. E se a situação do Brasil era diferente, com um Bragança no trono e casado com uma Habsburgo a satisfazer a Santa Aliança, bastou a informação sobre navios franceses no litoral brasileiro, para arrastar um pouco as negociações sobre o reconhecimento do novo país, com John Quincy Adams, o secretário de Estado, a pedir esclarecimento sobre as reais intenções do imperador D. Pedro I, antes de Monroe abrir as portas da Casa Branca ao enviado Silvestre Rebelo e assim formalizar o estabelecimento de relações diplomáticas. A França dos Bourbon restaurados juntara-se à Áustria, à Rússia e à Prússia nessa coligação conservadora europeia, decidida a eliminar qualquer vestígio da Revolução Francesa de 1789, enquanto a Grã-Bretanha, que em Waterloo tinha desferido o golpe definitivo nas ambições napoleónicas, se demarcara.

Monroe pronunciou um discurso que teve muito do pensamento de Adams por trás, diplomata experiente e que seria o seu sucessor. Mas dificilmente os Estados Unidos daquela época, prestes a celebrar meio século, tinham verdadeiro poder para travar a Santa Aliança. Adams sabia que a poderosa marinha britânica o faria, se necessário fosse. E isso permitiu a Monroe fazer a advertência, com convicção.

Donald Trump preside hoje a uns Estados Unidos muito mais poderosos, que em 2026 vão celebrar 250 anos desde a Declaração de Independência, o célebre 4 de Julho. E por isso aquilo que a nova estratégia americana diz sobre o Hemisfério Ocidental é para levar muito a sério. A América, que no final do século XIX tudo fez para afastar os espanhóis das Caraíbas, apoiando a independência de Cuba e anexando Porto Rico; a América que durante a Guerra Fria tudo fez para derrubar regimes amigos da União Soviética, só falhando no caso cubano; essa mesma América quer agora limitar a influência da China na América Latina, sobretudo na América do Sul. E a que resta da Rússia, igualmente, diga-se.

No espaço de uma ou duas décadas, a China foi-se impondo em vários países latino-americanos como o principal parceiro comercial, ultrapassando os Estados Unidos. O sucesso da iniciativa Uma Faixa, Uma Rota foi tremendo, e com os laços económicos vêm também os laços políticos. Mais recentemente, a China procurou também captar para a sua esfera de influência os países da região que tradicionalmente tinham relações com Taiwan, como o Panamá ou a República Dominicana, e com sucesso. 

Quando se menciona o Corolário Trump da Doutrina Monroe, a alusão é ao início do século XX, com o Corolário Roosevelt. Foi uma época em que os Estados Unidos, ainda jovens mas com uma força em crescendo, impunham a sua vontade à vizinhança do Sul, umas vezes com a cenoura, outras com o bastão. Há interessantes cartoons da época a mostrar Teddy Roosevelt com a cenoura e o bastão.

Não se sabe se será mais com a cenoura ou com o bastão que Trump imporá a sua visão de umas Américas fiáveis para Washington, que combatem as rotas de emigração ilegal e os fluxos de drogas. Há líderes para quem a cenoura parece funcionar bem, como Nayib Bukele, de El Salvador, ou o argentino Javier Milei, que estabeleceram relações pessoais com o presidente americano e puseram os seus países a beneficiar da boa vontade americana. Já o venezuelano Nicolás Maduro é claramente visto como um líder ilegítimo por Trump, que apoia a líder oposicionista María Corina Machado, Nobel da Paz. E as ações militares contra lanchas envolvidas no narcotráfico, que partem de território venezuelano, mostram a determinação americana em enfrentar velhos problemas, como o papel dos gangues de traficantes. Nas últimas horas, os Estados Unidos confirmaram a apreensão de um petroleiro junto à costa venezuelana, o que pode trazer ainda mais tensão à relação entre Washington e Caracas. Também tem havido tensão entre Trump e Gustavo Petro, o antigo guerrilheiro que é descrito como o primeiro presidente de esquerda da Colômbia. E mais uma vez a troca de acusações tem como pano de fundo a questão da droga, que é trágica nos países produtores, mas igualmente dramática para uns Estados Unidos que são o grande mercado, onde estão os consumidores cujos dólares enriquecem os cartéis. Só que se a Venezuela é vista com desconfiança desde os tempos de Hugo Chávez, o ideólogo do bolivarianismo, a Colômbia é um tradicional aliado dos Estados Unidos, ao ponto de ser o único país da América Latina parceiro global da NATO, um clube restrito, que inclui entre outros Japão, Coreia do Sul e Austrália.

Sabemos como resultou a Doutrina Monroe depois do discurso de 1823. Também está nos livros de História o que se seguiu ao Corolário Roosevelt. A bem ou a mal, os Estados Unidos foram-se tornando cada vez mais fortes e o chamado pátio das traseiras acomodou-se. Trump agora fala de liderança americana, mas também de desenvolvimento partilhado. A nova estratégia de segurança nacional, no que diz respeito ao hemisfério ocidental, promete vantagens claras para quem estiver do lado americano. A competição com os chineses vai ser dura, mas a geografia, a história e a cultura jogam a favor dos Estados Unidos.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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