É talvez a expressão mais portuguesa de todas, o desejo essencial. “Haja saúde”, dizemos nós, portugueses, quando o dinheiro falta, o amor azeda ou o mundo parece desabar. Mas essa espécie de fatalismo pragmático torna-se quase um exercício de ironia quando olhamos para o setor da Saúde e o vemos há décadas a definhar entre promessas políticas, improvisos e degradação de serviços que se repetem como gripes sazonais.O debate sobre a Saúde em Portugal está cronicamente preso num ciclo vicioso de guerras ideológicas e políticas de curto prazo. Onde a Esquerda quer um Serviço Nacional de Saúde quase exclusivamente público, a Direita apregoa as virtudes do privado e das PPP. A clivagem ideológica ganha nesta área uma espécie de terreno preferencial de combate. Cada governo muda o rumo do anterior, apaga projetos, troca diretores, substitui equipas e anuncia uma “nova era” que raramente dura mais do que um ciclo legislativo.O caso atual é exemplar. Luís Montenegro chegou ao poder há um ano e meio com promessas de um “plano de emergência” para endireitar o SNS em 60 dias. Se a meta podia soar arrojada então, hoje resulta apenas risível: as listas de espera cresceram, as urgências continuam a colapsar, os profissionais estão exaustos e mais de 1,5 milhões de utentes seguem sem médico de família. O entusiasmo de campanha dá hoje lugar a silêncios constrangidos.Esta semana reacendeu-se o debate, com a intervenção pública do Presidente da República e as notícias sobre cortes projetados para a Saúde no orçamento do próximo ano.Marcelo Rebelo de Sousa, que andou a evitar o tema durante meses, fez, nas comemorações dos 50 anos do Serviço Médico na Periferia, o diagnóstico que o Governo não queria ouvir (de tal forma que a ministra Ana Paula Martins até cancelou a presença): falta de estratégia, decisões a meio da ponte e um SNS em zona cinzenta. E pediu um pacto de regime, algo tão sensato quanto improvável num país onde a saúde serve de arma partidária.O Presidente poupou politicamente a ministra, mas deixou claro o falhanço coletivo da estratégia do Governo, apontando concretamente que o Executivo de Luís Montenegro optou por “não decidir” ao deixar a direção executiva do SNS – herança do Governo de Costa – “a meio da ponte”, com a demissão de Fernando Araújo como exemplo claro de uma política de mero ajuste de contas.Ao diagnóstico de Marcelo soma-se o anúncio de cortes de 886 milhões de euros em bens e serviços no orçamento da saúde para 2026, tibiamente justificados pela ministra no Parlamento, o que deixa antever apenas mais escassez, mais dívidas e uma provável maior dependência do setor privado, como alertou o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Xavier Barreto. Tudo isto quando se reergue no horizonte a ameaça do “diabo” nas contas públicas.Num país que falha em traduzir politicamente a prioridade expressa no pensamento popular, talvez nos reste mesmo a resignação fatalista: haja saúdinha.