Haja coragem para fazer a paz

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Henry Kissinger foi, para muitos, a personificação da realpolitik: um diplomata que via a paz não como fruto de ideais, mas como resultado do poder e do equilíbrio entre Estados. Antigo secretário de Estado de Richard Nixon, negociou o cessar-fogo no Vietname, a abertura diplomática da China e a política de détente com a União Soviética. Para Kissinger, a paz só poderia ser alcançada em duas circunstâncias: pela hegemonia de um dos lados ou pelo equilíbrio de poder entre rivais.

Essa visão pragmática reapareceu nas suas reflexões sobre a guerra na Ucrânia. Antes de morrer, já centenário, em 2023, defendeu que o conflito deveria terminar rapidamente, mesmo que isso implicasse concessões territoriais por parte de Kiev. Alertou os países europeus para não caírem na tentação de “esmagar” a Rússia, pois tal poderia desestabilizar o continente a longo prazo. Aos ucranianos, pediu que respondessem com “sabedoria” ao “heroísmo que demonstraram”, sugerindo que buscassem uma solução pragmática diante de uma grande potência nuclear com interesses vitais em jogo.

As suas palavras dividiram opiniões. Muitos acusaram-no de legitimar a agressão russa e de propor concessões injustas à custa da soberania ucraniana. Outros viram nelas um aviso realista para evitar que a guerra se transformasse num conflito prolongado e devastador para toda a Europa.

O custo humano da guerra é avassalador. Estimativas independentes apontam para mais de 150 mil soldados russos mortos, enquanto Kiev calcula que as baixas totais da Rússia ultrapassem um milhão de homens desde fevereiro de 2022. Do lado ucraniano, a Rússia já devolveu mais de 15 mil corpos de militares apenas em 2025, elevando o número de mortos confirmados a dezenas de milhares. A tragédia não se limita aos combatentes: milhares de civis perderam a vida e milhões foram forçados a abandonar as suas casas. Estes números reforçam a urgência de uma solução negociada, como defendia Kissinger, para evitar que o conflito se prolongue indefinidamente.

Quase três anos depois, as negociações em curso parecem aproximar-se da solução que Kissinger antecipava: concessões territoriais e impedimento da adesão da Ucrânia à NATO. É legítimo perguntar se valeu a pena o sofrimento humano e material suportado pelo povo ucraniano durante os últimos anos e se não teria sido possível chegar a um cessar-fogo mais cedo.

A paz faz-se com os inimigos, não com os amigos. E se é necessária coragem para fazer a guerra, por vezes ainda mais o é para fazer a paz. O presidente Volodymyr Zelensky enfrenta uma escolha difícil, que não diz respeito apenas ao presente conflito, mas à segurança do continente nas próximas décadas.

O que este conflito demonstrou é que nenhum dos lados alcançou a hegemonia. A Rússia não conseguiu subjugar a Ucrânia, nem reintegrá-la totalmente na sua esfera de influência. O Ocidente, por sua vez, não conseguiu provocar a implosão da Rússia através de uma guerra por procuração. Das duas hipóteses propostas por Kissinger, resta o equilíbrio de poder como caminho para a paz e a estabilidade. Neste cenário, a União Europeia terá um papel decisivo, através do reforço da sua capacidade militar, para assegurar a necessária capacidade de dissuasão, no âmbito de uma renovada détente com a Rússia. E, ao mesmo tempo, é necessário que a União Europeia apoie a reconstrução da Ucrânia e promova a sua integração do ponto de vista económico.

Diretor do Diário de Notícias

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