Graves traições. Silêncios incompreensíveis

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O caso revelado nesta terça-feira, uma organização criminosa que extorquia, ameaçava e maltratava imigrantes vulneráveis, envolvendo dez militares da GNR e um agente da PSP, desmente a imagem de Estado de Direito que Portugal proclama, assente no respeito pelos Direitos Humanos, no controlo democrático da força e na igualdade perante a lei.

E expõe aquilo que é, provavelmente, a mais grave das traições institucionais: a de agentes públicos que, investidos do dever de proteger os mais frágeis, se colocam ao lado dos que os exploram.

O retrato é o de um país onde o controlo da ação policial falha, a prevenção de abusos é insuficiente, e a exploração de imigrantes - mesmo com novas políticas de controlo em curso - continua um terreno fértil para redes criminosas, para omissões cúmplices e para uma economia que prefere não fazer perguntas incómodas.

As descrições da Polícia Judiciária (PJ) são inequívocas: um grupo “de estilo mafioso” controlava centenas de trabalhadores estrangeiros, em grande parte indostânicos e em situação irregular. Através de empresas de trabalho temporário criadas propositadamente, em vez do emprego prometido, entregava-se coação. Cobravam-se alojamentos indignos e despesas arbitrárias, retinham-se salários e, quando surgia resistência, utilizava-se a ameaça, como o alegado apoio de polícias corruptos para silenciar denúncias. Estamos perante violência organizada, alimentada por vulnerabilidade humana e por uma cadeia de responsabilidades que falhou em toda a linha.

O Ministério Público informou que estão em causa crimes de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas, corrupção ativa e passiva e abuso de poder. A presença de militares e agentes neste esquema aumenta enormemente a gravidade dos factos. Quando quem veste a farda - símbolo da proteção e da lei - se coloca ao lado dos exploradores, deixa de falhar apenas a ética. Falha o próprio contrato de confiança que sustenta o Estado.

E é por isso que os comunicados institucionais da GNR e da PSP - apesar de importantes - não chegam. Falta a palavra pública, firme e direta dos seus máximos responsáveis. Como é possível que um caso desta dimensão, com dezenas de mandados de busca, detidos e indícios de abuso sistemático, não tenha merecido uma palavra do comandante-geral da GNR, do diretor Nacional da PSP? Por cautela? Para proteger a presunção de inocência? Talvez. Mas nada impedia que não tivessem mostrado a sua cara e, olhos nos olhos, perante o país, principalmente a comunidade que devem proteger, afirmassem perentoriamente que estas práticas são intoleráveis. É diferente do que se esconderem atrás de comunicados.

O silêncio, em casos desta enormidade, não é prudência. Pode ser interpretado como ausência de liderança. E onde falta liderança, cresce a desconfiança.

Outra questão se impõe: o que está a falhar no controlo da ação policial? Falham os mecanismos internos de disciplina? Falha a supervisão hierárquica? Falha a capacidade de detetar comportamentos desviantes?

O Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação da IGAI estava a levar um bom caminho e deveria ser um pilar na prevenção deste tipo de abusos, mas agora pouco se sabe sobre a sua execução. E faz parte também da prevenção deste tipo de atos que haja debate público e se conheça de forma transparente as ações em curso e os seus indicadores de sucesso.

A opacidade impede que os cidadãos compreendam se o Estado está, de facto, a ser capaz de identificar e prevenir fenómenos de discriminação, abuso de poder e conivência das forças de segurança com redes criminosas.

Recorde-se que, em 2024, o Tribunal de Beja voltou a condenar, em cúmulo jurídico, três ex-militares da GNR por crimes cometidos entre 2018 e 2019 contra imigrantes em Odemira. Dois deles receberam penas efetivas superiores a oito anos de prisão. A repetição destes episódios revela que não estamos perante desvios individuais, mas perante o que já pode configurar um padrão que se repete em determinadas zonas rurais, associado a vulnerabilidade migrante, falta de escrutínio e uma cultura organizacional que, apesar de todos os avanços, ainda não é imune à permissividade.

Mas olhar apenas para as forças de segurança seria demasiado cómodo. Porque há outro lado desta história: os empregadores. As explorações agrícolas que contratam trabalhadores por valores abaixo mercado. As empresas que não querem saber onde vivem estas pessoas, em que condições chegam, quem controla os seus documentos, quem lhes retém salários ou as ameaça. As propriedades onde trabalhadores são encontrados em barracões insalubres, sem água quente, sem contratos e sem dignidade.

A verdade é dura, mas simples: sem empresários dispostos a lucrar com trabalho quase escravo, estas redes não prosperariam. Onde está a consciência social destes agentes económicos? A traição é também deles.

Quando imigrantes em Portugal são obrigados a mendigar comida, como sucedeu com alguns destes trabalhadores, não é só a polícia e as entidades inspetivas, como a Autoridade para as Condições de Trabalho, que falham. É um fracasso moral completo, a desumanidade coletiva na sua máxima expressão. Vale, pelo menos, a investigação da Polícia Judiciária que, mais uma vez, não fechou os olhos.

Portugal gosta de se apresentar como um país acolhedor. Mas a prática mostra que o Estado não está a proteger quem mais precisa, que parte dos empresários ignora a dignidade humana quando isso reduz custos, e que algumas franjas das forças de segurança, embora minoritárias, continuam vulneráveis à tentação da corrupção e ao abuso de poder.

Um Estado que tolera a vulnerabilidade falha eticamente. Falha enquanto comunidade que se quer decente e justa.

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