A prática é tão velha nos Estados Unidos que o termo gerrymandering vem de Elbridge Gerry, que, quando era jovem, foi um dos signatários da Declaração de Independência de 1776 e, já perto da morte, chegou a ser eleito vice-presidente. Terá sido no seu tempo de governador do Massachusetts, no início do século XIX, que o redesenho criativo de círculos eleitorais originou um de tal forma a lembrar uma salamandra que os jornais não só dedicaram cartoons ao tema como cunharam o termo gerry-mander, mistura do nome do político com a palavra inglesa salamander. Com o tempo, o hífen desapareceu e surgiu o verbo gerrymandering, a descrever uma das práticas políticas mais denunciadas nos Estados Unidos, mas nem por isso menos praticada. Como agora está a acontecer, com republicanos e democratas envolvidos no gerrymandering já a pensar nas eleições intercalares de novembro de 2026, aquelas que podem confirmar, ou não, uma maioria republicana na segunda metade do mandato de Donald Trump, essencial para o legado do presidente. Em causa, sobretudo, a maioria na Câmara dos Representantes, neste momento detida pelos republicanos, com 219 assentos, contra 212 dos democratas e quatro por preencher. Segundo os cálculos dos estrategas do Partido Democrata, é perfeitamente possível inverter os números daqui a 15 meses, quando todos os 435 representantes forem a votos. Também ambicionam fazer o mesmo no Senado, onde os republicanos dominam com 53 assentos. Mas, como só um terço dos cem senadores irá a votos em 2026, a tarefa é objetivamente mais complicada, admitem os próprios democratas.E onde é que entra o gerrymandering aqui? De forma muito visível no Texas e na Califórnia, os dois estados com mais peso político, pois o primeiro tem direito a 38 representantes e o segundo a 52. O sistema bicameral americano é composto pelo Senado, baluarte do federalismo e, por isso, com dois senadores por estado, e pela Câmara dos Representantes, que reflete a demografia do país. O redesenho dos distritos eleitorais deveria ser o mero reflexo das oscilações populacionais, mas na verdade é usado por ambos os partidos para favorecer os seus candidatos, ou diluindo os eleitores dos rivais ou concentrando-os. Num país em que tudo o que tem a ver com comportamento eleitoral é estudado ano após ano ao milímetro pelos cientistas políticos e também pelas direções partidárias, não é difícil saber onde está concentrado cada eleitorado, que redesenho tem de ser feito, nem que, como há dois séculos, isso dê origem a distritos com formas bizarras, por vezes até a relembrar a tal salamandra de Gerry.Foram os republicanos que desta vez começaram, no Texas, dizem os democratas, e apontando para um pedido de Trump. Tudo para garantir que cinco lugares extra vão parar ao partido do presidente em 2026. Cinco assentos que podem ser a diferença entre a vitória ou a derrota a nível nacional. Retaliaram os democratas na Califórnia, também com cinco assentos extra na mira, mais uma vez a apontar para a diferença a nível nacional. Tudo está já em andamento, mesmo que o lado oposto em cada estado não tenha ainda desistido de travar o gerrymandering que lhe é desfavorável. E não é de afastar mais estados controlados pelos republicanos a imitar o Texas, até por mais pressão de Trump, e mais estados sob controlo democrata a seguir o exemplo da Califórnia. Isto sem esperar pelos dados do census de 2030, que daria oficialmente o pretexto para o redesenho dos distritos.A imagem da democracia americana fica afetada, pela ideia de injustiça, e pior do que isso, todo o processo divide mais os americanos, pois o resultado previsível serão distritos eleitorais que se arriscam a não representar boa parte do eleitorado nele incluído. Ser uma prática antiga não serve de desculpa. Não acredito que Elbridge Gerry, um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, tivesse gostado de ser relembrado sempre que se fala de gerrymandering.Diretor adjunto do Diário de Notícias