Ao longo da minha experiência profissional, aprendi que, no domínio da segurança e da análise estratégica, os factos raramente correspondem às narrativas simplistas. O caso de Gaza, entre 2007 e o ataque de 7 de outubro de 2023, ilustra de forma paradigmática esta realidade. O Hamas, assumindo o controlo total do território, construiu uma entidade política que, pelas normas internacionais aceites — recordo a Convenção de Montevideo de 1933: população permanente, território definido, governo efetivo e capacidade de relações externas — configurou um quase-Estado.Com pouco mais de 1,5 milhões de habitantes em pouco mais de 360 km², governou com ministérios - destacando-se atualmente o abundantemente citado ministério da saúde de Gaza -, impostos, controlou serviços sociais, policiou as fronteiras e estabeleceu parcerias externas, inclusive com Estados terceiros. Alguns poderiam compreender que este percurso abriria portas ao desenvolvimento institucional. Contudo, a prioridade dada à militarização, o sistemático desvio de fundos oriundos de contributos internacionais para a construção de infraestruturas militares subterrâneas — o denominado “Gaza Metro” —, a instrumentalização da população civil como escudo estratégico e a repressão interna transformaram este protótipo de Estado numa organização funcionalmente orientada para o terrorismo, para o conflito e para a perpetuação do risco.O ataque de 7 de outubro de 2023, resultando em mais de mil vítimas civis israelitas e centenas de raptos, foi uma decisão calculada, não um ato impulsivo. A estratégia do Hamas, ao longo de quase duas décadas, procurou manipular o equilíbrio de poder e testar a resiliência do adversário apostando no desgaste. A resposta israelita — e esta é uma premissa fundamental — inscreve-se num quadro internacional onde Israel, para além das enormes dificuldades criadas por um cenário táctico e operacional dificílimo, está sujeito a regras e expectativas de defesa que lhe exigem operar em condições muito mais restritas do que as enfrentadas por muitos outros contendores em situações similares. O padrão de escrutínio legal, político e mediático coloca Israel sob uma lente particularmente rigorosa.E é importante realçar que o Hamas é o responsável direto por submeter a população de Gaza às condições humanitárias extremas atuais. Ao posicionar deliberadamente lançadores de rockets em zonas densamente povoadas, sob infraestruturas de saúde, de escolas e até de agências internacionais e utilizar civis como escudo, o Hamas cria um cenário em que os seus próprios cidadãos pagam o preço da sua estratégia militar, expondo-os ao duplo risco: a ameaça inerente da violência interna e a inevitável retaliação israelita. Em última análise, é o Hamas que escolheu o terreno onde a população vive e sofre.Aqui há outro facto inescapável: Gaza está a sofrer e continuará a sofrer mais ainda por causa do caminho que escolheu, um caminho que na prática deu o golpe de misericórdia a qualquer possibilidade — já precária — de criação de um Estado palestiniano. Esta é uma força política que, apesar das retóricas, nunca pareceu verdadeiramente interessada em um projeto de Estado estável. A sua liderança optou repetidamente por uma radicalização que inviabilizou soluções duradouras e sacrificou as condições mínimas para o desenvolvimento político e social.A discussão sobre a responsabilidade coletiva dos gazenses, embora delicada, não pode ser simplesmente ignorada. Inquéritos subsequentes ao ataque indicam que uma parte significativa da população manifestou apoio à agressão iniciada pelo Hamas, o que não elimina a existência de inúmeras vítimas inocentes, mas complica uma narrativa unilateral de pureza do sofrimento. O direito internacional proíbe punição coletiva — norma imprescindível —, mas também exige que se compreenda o contexto político e social que perpetua o ciclo violento, sob pena de se legitimar implicitamente a manutenção dessas condições.Reduzir Gaza a um enclave impotente esmagado pela força de Israel é um equívoco estratégico. O Hamas teve efetivamente os meios para funcionar como um proto-Estado, mas optou por um caminho de confrontação, rejeitando itinerários políticos e apostando na violência. Israel, apesar das dificuldades, manteve canais vitais, fornecendo água, eletricidade e alimentos, dentro do possível num contexto de segurança complexo — um dado que raramente tem o devido destaque.Por fim, não se trata de negar o sofrimento dos civis nem as legítimas aspirações palestinianas. Trata-se de uma análise pragmática da realidade: o Hamas teve uma oportunidade rara de estabelecer uma governação construtiva em Gaza, mas deliberadamente escolheu o terrorismo e a guerra, subjugando o futuro do seu povo à lógica da perpetuação do conflito. Quem mantém essa dinâmica está, na prática, a colocar a sua sociedade numa situação em que as exigências colocadas a Israel para sua defesa são incomparavelmente mais rigorosas do que as de qualquer outro contendor em conflito semelhante. Este é um peso colocado nas costas dos civis, que são usados como escudos não apenas físicos, mas também políticos.Enquanto esta realidade desconfortável e complexa não for assumida por diplomatas, jornalistas e analistas, continuaremos presos num ciclo de violência onde a ajuda internacional e as negociações não haverá de alcançar soluções estruturais verdadeiras.