Gaza, a bolha mediática e a imprescindível literacia da desconfiança

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A evolução do processo que conduziu ao cessar-fogo em Gaza expôs, sem almofadas, a chamada “bolha mediática”. Um espaço onde o choque e a surpresa reinam e onde, do público aos comentadores, de políticos a jornalistas, se multiplicam convicções construídas sobre pressupostos errados. 

Narrativas confundidas com informação. Notícias objectivas misturadas com interpretação. Wishful thinking servido como análise. Pensar com o coração continua mais cómodo do que pensar com a razão.

Numa bolha caracterizada pela equivocidade — excesso ou proliferação de informação, muitas vezes conflituante — o barulho dos comentadores, que padecem do mesmo mal do público, só reforça o efeito de eco. As redes sociais completam o quadro: propagam versões parciais à velocidade da luz e tornam irrelevante a verificação. Em minutos, opiniões viram factos. Factos são descartados como meras opiniões.

E não é inocente. 

Há desinformação e propaganda lançadas de forma deliberada por agentes do próprio conflito. Fotografias fora de contexto, vídeos manipulados, números inflacionados ou minimizados, relatos fabricados. Tudo com o mesmo fim: manipular percepções, condicionar a opinião pública e moldar a narrativa global para servir quem combate menos no terreno e mais nos ecrãs. 

São armas cognitivas — e, nesta guerra, funcionam com eficiência cirúrgica.

Hoje, a ferramenta decisiva para navegar nesta bolha já não é obter informação. É filtrá-la. Depurar os dados. Separar o essencial do acessório, o objectivo do enviesado, o facto da emoção. É a literacia da desconfiança — a fronteira entre o cidadão informado e o mero replicador de ruído.

Sem esse filtro, a percepção pública torna-se reflexo condicionado por agendas externas. As decisões, na sociedade civil e no plano político e diplomático, reagem mais à pressão mediática do momento do que a uma avaliação fria e sustentada. 

Gaza é exemplo disso: um alinhamento quase automático de posições, alimentado mais por emoção e material mediático direccionado do que por conhecimento rigoroso dos factos.

E chegamos, então, à surpresa. O cessar-fogo, e em particular os seus termos, apanhou muitos desprevenidos. Mas foi um resultado induzido — e previsível — que favorece Israel, permitindo-lhe assumir, com legitimidade reconhecida, o que sempre esteve à vista de quem não se deixou aprisionar pela névoa da bolha mediática. 

O resto é ruído, distribuído entre indignações de ocasião e certezas postas em pausa — até à próxima bolha.


Analista de Estratégia, Segurança e Defesa

Diário de Notícias
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