Futebol & dinheiro

Eis uma evidência de todos os dias: na sociedade portuguesa, o futebol é a matéria central da cultura dominante.
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Quando vejo e ouço a maioria dos analistas televisivos do futebol a comentarem, muitas horas por dia, vários dias por semana, os valores astronómicos das transferências de jogadores, vem-me sempre à memória o filme final do mestre francês Robert Bresson (1901-1999) — chama-se O Dinheiro e foi lançado em 1983.

Reconheço que há algum mal-estar, próximo de uma culpa insidiosa, na minha memória. Na verdade, devo reconhecê-lo, Bresson é um cineasta que levei tempo a compreender em todo o seu esplendor narrativo. Sem dúvida por isso, além de me exigir o máximo de concisão na abordagem da sua obra, atrevo-me a supor que a inteligência moral do seu trabalho pode interessar qualquer analista — incluindo um comentador televisivo de futebol. Daí a minha pergunta: como é que cada um desses comentadores vê, descreve e interpreta um filme como O Dinheiro?

Vale a pena lembrar que, tendo como ponto de partida um conto de Tolstoi, Bresson conta uma história de um tempo (o da própria produção do filme) em que já há máquinas multibanco. Dito de outro modo: estamos perante um verdadeiro conto moral que não se dilui numa qualquer nostalgia “literária”, antes remetendo para o presente em que o espetador descobre o filme.

A personagem central de O Dinheiro, Yvon (Christian Patey), é alguém que descobrimos numa solidão radical, desde logo em rutura com o espaço familiar. Digamos, para simplificar, que toda a sua existência está assombrada pela presença (ou ausência) do dinheiro. Agravando a sua dependência, Yvon vai funcionar como transportador incauto de uma nota falsa de 500 francos (já se fazia grande cinema antes do euro...), transformando-o em alvo das autoridades policiais e, por fim, em protagonista de eventos visceralmente trágicos.

O Dinheiro (1983): um conto moral antes do euro...
O Dinheiro (1983): um conto moral antes do euro...

A moral é linear e, de facto, trágica — tragicamente atual. A saber: o dinheiro, ou melhor, a sua circulação arrasta uma avalanche de ambiguidades em que, no limite, a dimensão humana tende para o vazio, transformando-se em “coisa” descartável. Ora, no pequeno ecrã, o espaço de reflexão sobre o futebol consegue a proeza bizarra (pueril, a meu ver) de tratar o dinheiro como matéria natural, quer dizer, produto de uma natureza que existe como entidade que não suscita qualquer dúvida ou perturbação — discutem-se os milhões que custa o passe de um jogador como se o valor monetário do futebol fosse o produto de uma sociedade em que a distribuição de recursos (financeiros, precisamente) fosse a coisa mais pacífica do mundo.

Já nem espero que algum dos comentadores pare para perguntar se faz sentido um país como Portugal envolver-se (financeiramente) na organização de um Mundial de Futebol — aliás, o seu silêncio ecoa a indiferença da classe política em relação ao assunto. Acontece que as palavras com que se descrevem (?) os circuitos dos dinheiros do futebol reforçam a noção de que o próprio futebol pertence a uma cultura autónoma em que o dinheiro existe como bênção transcendental e, nessa medida, inquestionável.

Julgarão os mais precipitados que estou a convocar, implicitamente, os casos de corrupção financeira que, em décadas recentes, têm pontuado a história do futebol (não português, mas global). Nada a ver, de facto — além do mais, não me vejo como juiz imaculado de todos os males que afetam o nosso mundo. Falo apenas da responsabilidade mediática que pode, e deve, ser atribuída a qualquer analista, seja qual for o domínio da sua intervenção. Porquê? Por uma razão antiga e primordial que, em 1945, Ludwig Wittgenstein condensou numa frase que gosto de citar: “As palavras são ações”.

Há outra maneira de lidar com tudo isto. Consiste em ter a serenidade de reconhecer que a cultura dominante na sociedade portuguesa tem o futebol como matéria central. Há uma tradição cínica que continua a tentar atribuir aos que lidam com as artes (exemplo: os críticos de cinema) todas as responsabilidades pela definição e propagação dos valores culturais da sociedade. De facto, da perceção do dinheiro às componentes específicas das relações humanas, poucos possuem o poder — e a omnipresença — dos analistas do futebol. Vivem, por isso, condenados pela maldição que Flaubert identificava nas vidas de Bouvard e Pécuchet: “E ao ter mais ideias tiveram mais sofrimentos”.

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