Em 29 de outubro de 2023 entrou em vigor o novo regime de controlo de fronteiras em Portugal, resultado da extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Nos aeroportos, estava previsto que a PSP assumisse todas as competências policiais. Mas dois anos depois, a realidade desmente o plano: a PSP ainda não consegue assegurar a missão a 100%, dependendo da permanência de inspetores da Polícia Judiciária (ex-SEF) para garantir o funcionamento do sistema, que ficou ainda sujeito, desde 12 de outubro último, a um novo sistema europeu de controlo automatizado de fronteiras externas, o Entry/Exit System (EES). Este desfasamento entre o texto da lei e a prática operacional é o reflexo de uma falha governativa de planeamento e execução. O regime aprovado pelos decretos-lei n.º 40/2023 e 41/2023 previa que a transição se concluísse num prazo de um ano, prorrogável por igual período, garantindo a transferência integral das funções de controlo de fronteiras para a PSP e a GNR. Se no ano passado as metas foram cumpridas, com a PSP a assegurar 50% dos postos de controlo anteriormente sob responsabilidade do SEF e a GNR a garantir já a totalidade nas fronteiras terrestres e marítimas, o mesmo sucesso não irá acontecer no próximo dia 29 de outubro. Isto porque o Estado não dotou a PSP dos meios humanos, técnicos e organizacionais necessários para cumprir o mandato. Faltam recursos, formação e um modelo orgânico estável nesta força de segurança que permita libertar os meios necessários para o controlo de fronteiras. Lisboa é o exemplo notório: a reconfiguração do dispositivo policial é discutida pelo menos desde 2014, mas continua por concretizar.A esta carência estrutural soma-se uma gestão quase obsoleta dos recursos internos. Muitos agentes da PSP continuam presos a tarefas burocráticas ou administrativas que poderiam ser desempenhadas por civis - como sucede em quase todos os países europeus. Portugal é, de facto, um dos Estados da UE com menor percentagem de pessoal civil nas forças de segurança. A consequência é óbvia: menos agentes disponíveis para funções operacionais, maior desgaste interno e menor eficiência no terreno. Mas o problema é ainda mais profundo: a PSP enfrenta hoje uma crise de recrutamento sem precedentes. Os concursos recentes têm revelado falta de candidatos para preencher as vagas disponíveis, o que reflete o desinteresse crescente por uma carreira marcada por baixos salários, progressões lentas e condições de trabalho exigentes. O Governo tem alterado regras de admissão e prometido reforços, mas sem resolver a raiz do problema: a perda de atratividade da profissão policial. É neste contexto que se exige à PSP que assuma o controlo das fronteiras aeroportuárias, uma missão altamente técnica e sensível, que requer pessoal especializado, formação constante e equipamentos modernos. Estima-se que a tarefa possa absorver 1.500 agentes em 2026, retirando efetivos de outras áreas já fragilizadas. Sem uma política séria de recrutamento e retenção, esta expansão arrisca agravar a escassez de meios e comprometer a qualidade do serviço.O controlo das fronteiras não é uma função acessória. É uma linha de soberania, um espaço onde o Estado se mostra e onde se mede a sua eficácia. Delegar essa responsabilidade a uma força sem lhe garantir recursos humanos suficientes nem estrutura adequada é colocar em causa a segurança e a credibilidade nacional. A extinção do SEF podia ter sido uma oportunidade para reorganizar, profissionalizar e modernizar o sistema; acabou por se tornar num caso exemplar de reforma feita ao contrário - começando pelo fim.Portugal precisa de proteger as suas fronteiras com pessoal especializado, condições dignas e planeamento estratégico. Caso contrário, continuará a viver entre leis bem-intencionadas e realidades que as desmentem. E um país que não controla eficazmente as suas fronteiras não reforça a sua soberania: enfraquece-a.