Francisco Fanhais: por isso eu canto

Francisco Fanhais: por isso eu canto

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Foi por imitação, mas não por imitação de Cristo, que escolheu a vocação. Tinha dez anos apenas, acabara a quarta classe. Os seus pais, católicos fervorosos, perguntaram-lhe com bons modos “Então, agora como é? Agora vais para o liceu?”. “Eu agora quero ser padre”, respondeu-lhes lesto Francisco, Francisco Júlio Amorim Fanhais, que vira a luz a um sábado, 17 de Maio de 1941, em Praia do Ribatejo, Vila Nova da Barquinha, ao lado da Base de Tancos.

Nado na Segunda Guerra, portanto, das primeiras lembranças que guarda é a de ver passar os tanques na rua onde morava, e de as casas terem papéis colados nas janelas por causa dos bombardeamentos. Mas também, já então, uma recordação musical, a dos sinos a tocar a finados: “ainda hoje me lembro da dolência daquela melodia.”

Quando tinha nove anos, feita a primeira e a segunda classes, o pai, médico, foi trabalhar para o Entroncamento, e a família seguiu-lhe no encalço. Foi aí que Francisco concluiu a terceira e a quarta classes e, no término desta última, revelou aos pais que queria ser sacerdote, opção que os deixou intrigados, entristecidos até, mas que ele explica por querer seguir o exemplo do padre Gonçalves, um jovem coadjutor na paróquia do Entroncamento que era, segundo ele, “muito amigo das crianças, muito brincalhão, muito simples, de quem nós gostávamos muito”. E acrescenta, singelo: “Para mim, ser padre era ser como aquele homem. Foi, pois, um puro fenómeno de imitação. Não tinha, na altura, nenhuma outra razão mais profunda” (cf. Diário do Alentejo, de 3/6/2022).

Até aí, andava de bibe e calções, feliz da vida. Chegado o dia de entrar para o seminário, passou a vestir a rigor: calça, gravata e casaco pretos, camisa branca, imaculada. Ao vê-lo trajado assim, pronto a partir para sempre, a mãe teve uma “tristeza muito grande”, pese ser muito devota. Depois, acostumou-se. Hoje, à distância de tantas décadas, Francisco conclui, sempre sereno: “os meus pais aceitaram perfeitamente, embora lhes tivesse doído um pouco, mas era essa a minha vontade, Eram esses também os desígnios, a vontade de Deus, se calhar - interpretaram isto assim, e foi assim”, disse o padre-cantor em entrevista ao 7 Margens, 13/5/2023.

Só vinha a casa nas férias grandes, de Natal e de Páscoa, e esteve quatro anos no Seminário de Santarém, onde ainda vigorava “a lei da palmatória e da bofetada”. Um dia, por azar, entornou um tinteiro cheio de tinta-da-china, o que lhe valeu seis reguadas em cada mão. “Andei três dias sem as sentir, parecia que eram de cortiça”.

Daí seguiu para o Seminário de Almada, e depois para o dos Olivais. Como muitos, quase todos, teve dúvidas, inquietações, mas nunca pensou desistir: “mantive sempre esta vocação, as razões para continuar sempre no seminário.” Foi ordenado por Cerejeira e celebrou a Missa Nova na Quinta-Feira Santa de 1965, na freguesia de Benfica, onde morava.

A música acompanhou-o desde cedo, seja ao som dos sinos que tocavam a finados, seja por a ter ouvido ainda criança. Seu pai, diz ele, “tocava piano e cantava muito bem” (lembra-se de ouvi-lo cantar “A Canção das Rendilheiras”) e, quando Francisco foi para o seminário, a música e o canto eram uma das suas disciplinas preferidas. Aí aprendeu solfejo, canto gregoriano, canto coral, participou num Te Deum em São Domingos, em 1954, 1954, com a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida por Pedro de Freitas Branco, cantou no Mosteiro dos Jerónimos, aquando da inauguração do Monumento do Cristo-Rei, e na Sé de Lisboa, nas missas de Natal e da Semana Santa.

Quando lhe faltava um ano para acabar o curso de Teologia, por volta de 1963, 1964, um padre professor no seminário emprestou-lhe para ouvir “baixinho” um disco de Zeca Afonso, Baladas de Coimbra. De um lado, “Os Vampiros”, com um refrão celebérrimo, "Eles comem tudo, eles comem tudo / Eles comem tudo e não deixam nada"; do outro, “Menino do Bairro Negro”, a primeira canção de Zeca a ser proibida pela Censura. O disco teve nele o efeito de uma epifania: “O que eu senti, ao ouvir aquelas duas canções, foi como um murro no estômago, uma revelação. Ainda guardo em casa esse disco…”

Sobre essa audição, descrita com laivos místicos, acrescenta Fanhais: “’Os Vampiros’ fizeram soar sinos dentro do meu coração. A fabulosa letra da canção chamou-me a atenção para um problema social gravíssimo - "eles comem tudo e não deixam nada" -, que me pôs a refletir sobre as realidades dos que têm tudo e daqueles que passam uma vida inteira a mendigar as migalhas que caem da mesa dos ricos. Antes disso já me tinha dado, com certeza, conta de muita coisa, mas essa audição, fundamental na minha vida, foi um marco na minha consciencialização política”.

Entretanto, começara a guerra colonial e, com ela, a dúvida sobre o que fazer. A existência de capelães militares não lhe suscitava problemas, uma vez que, em seu entender, os soldados na frente necessitavam de apoio espiritual e religioso; questionável, isso sim, era “uma pessoa ser quase obrigada a ir para capelão” e, em termos mais vastos, “a ligação estreita e a cumplicidade perfeita entre a hierarquia católica e o Estado, o governo e a situação política”.

Se a música de José Afonso e a guerra colonial já tinham despertado muita coisa, o detonador da ruptura surgiu sob a forma de um padre mítico, e não menos carismático, José da Felicidade Alves. Define-o como “um leão” ou, melhor dito, como um leão para a sua geração, a dos jovens padres que se formaram em finais dos Anos 50, inícios dos 60, no Seminário dos Olivais, onde Felicidade Alves leccionava Teologia. “Ele foi aquele que puxou por nós, que denunciou, que entrou em conflito com a Igreja, justamente por denunciar esta cumplicidade [da hierarquia da Igreja com o regime]. E para ele era impossível aguentar mais este silêncio cobarde, cúmplice, da Igreja, em relação ao que se passava com a Guerra Colonial”.


As denúncias feitas por Felicidade Alves no púlpito dos Jerónimos, em missas frequentadas por Américo Thomaz e família e por outros próceres do regime, acabaram por levar a que fosse suspenso ad divinis, por decisão do cardeal-patriarca Gonçalves Cerejeira, que antes tivera o pároco de Belém como um dos seus mais brilhantes e queridos pupilos. O clero “progressista”, claro está, entrou em ebulição, e Fanhais não foi excepção. As suas missas passaram a ser vigiadas por agentes da PIDE e, numa delas, na Igreja da Madre de Deus, em Lisboa, três elementos da polícia política entraram portas adentro, obrigando os presentes a identificarem-se.

Em 1968, já politizado, conheceu Zeca Afonso, ainda hoje o seu ídolo máximo. O encontrou decorreu nas Lapas, no concelho de Torres Novas, em cujas grutas artificiais, nascidas da extracção mineira, havia por hábito realizar sessões e iniciativas culturais para jovens, obviamente subversivas. Fanhais era então professor no seminário diocesano de Torres Novas e um dos organizadores daqueles meetings, o padre Manuel Tiago, ligou-lhe dizendo que tinham convidado “o dr. José Afonso” e que gostavam muito que ele comparecesse. Realizou-se assim o espectáculo, o qual fora apadrinhado, note-se, pelo presidente da câmara de Torres Novas, Fernando Cunha, que, sendo um homem afecto ao regime, estava danado com os desmandos da ditadura, a ponto de ter proclamado que “a PIDE só entra aqui por cima do meu cadáver!”. E a PIDE não entrou. Mas, volvidos dois meses, elaborou relatório, com base em testemunhos indirectos, e foi com base nesse documento, que viu anos depois na Torre do Tombo, que Fanhais pôde datar com precisão o dia milagroso em que conheceu o Zeca, 28 de Dezembro de 1968.

Na altura, um jornal juvenil de Torres Novas descreveu assim o espectáculo: “surge José Afonso, não se importando de ferir. Pediu desculpa porque estava rouco, mas quando abriu a garganta e começou a cantar o “Menino do Bairro Negro” houve uma mudança total nas pessoas: as tosses e os ruídos acabaram. Nós, sentados no chão, ganhávamos um pouco de mistério, de beleza, do sórdido, do que existia de inconformista na canção. As nossas vozes não eram nossas: eram de todos aqueles meninos de bairros negros (...). O padre Fanhais avisa toda a gente que por cada flor estrangulada há milhares de flores hesitantes, mas que um dia se levantarão. Avisa por fim, angustiadamente, que é preciso mais flores, mais flores, mais flores” [cit. in Manuel Tiago Monteiro Martins, “Os padres dos Olivais nos anos 60. A Tribuna Livre”, in Artur Lemos (dir.), Por Caminhos Não Andados. Seminário dos Olivais, 1945/1968, 2007, pp. 262-263].

Fanhais, que se encontrava então no Barreiro, onde era coadjutor na paróquia e leccionava Religião e Moral no liceu, manteve o contacto com Zeca, que passou a ser literalmente seu “companheiro”, “aquele que come do mesmo pão. Cum pane”. No ano seguinte, Zeca levou-o ao icónico Zip-Zip e Portugal inteiro ficou a conhecer aquele padre baladeiro, que nesse mesmo ano de 1969 lançaria o seu primeiro disco, o EP Cantilenas, ou, melhor dito, um EP editado pela portuense Orfeu, de Arnaldo Trindade, cuja capa ostentava tão-só os dizeres “Padre Fanhais”, sobre uma fotografia poderosa de Augusto Cabrita, tendo o Lado A as músicas “Cantilena” (a do célebre poema de Sebastião da Gama, "Cortaram as asas ao rouxinol / Rouxinol sem asas não pode voar") e “Juventude” e o Lado B “Areia da Praia” e “Canção do Vento”. No final do ano de 1969, mais precisamente a 19 de Dezembro, Fanhais fazia a capa do primeiro número da revista Mundo da Canção, lançada, segundo o seu fundador, Avelino Tavares, com o propósito expresso de “lutar contra o cançonetismo apodrecido e ajudar a construir uma canção diferente”.

A aparição do Zip-Zip convertera-o numa estrela, como o próprio aliás reconhece: “a partir daí comecei a ser convidado para cantar em muitos sítios. Achavam graça um padre a cantar coisas e denunciar a Guerra Colonial, por exemplo. Tudo isso fez com que eu começasse a ter problemas, tanto do ponto de vista político, como do ponto de vista da hierarquia da Igreja.” De resto, das quatro canções que Fanhais gravou para o programa de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz, a Censura só deixou passar duas e queria mesmo cortá-las todas, valendo a coragem daqueles três apresentadores, que disseram “o padre não passa e o programa acaba”, o que seria impensável, dada a sua extraordinária popularidade (aliás, foi logo a seguir à sua aparição no Zip-Zip que Arnaldo Trindade o convidou a gravar Cantilenas).

Em 1970, é editado um novo álbum, Canções da Cidade Nova, de onde consta, entre outras, a “Cantata da Paz” com poema de Sophia, "Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar", cantada pela primeira vez numa igreja no decurso da vigília de São Domingos, na passagem do ano de 1968 para 1969, em que Fanhais participou. Entretanto, os anos passados no Barreiro foram fundamentais para a sua consciencialização social e política: no Entroncamento, diz ele, vivia num ambiente burguês e fechado (o pai falecera tinha ele 17 anos); agora, na Margem Sul, convivia de perto com operários e militantes oposicionistas, tocava em tudo o que era colectividade e sociedade recreativa - Os Franceses, os Penicheiros, etc. - “sempre que cantava, denunciava, e cada vez mais as pessoas achavam graça ser um padre a denunciar”. A PIDE de Setúbal alertava a sede para a “campanha de subversão” levada a cabo pelo “clero progressista” e o próprio director, Silva Pais, identificou Fanhais como o principal responsável pelo “clima de exaltação subversiva” na música portuguesa. “As informações recebidas pela PSP mostram que o Padre Fanhais desenvolve em todo o país uma actividade indesejável, cantando baladas cujos temas não se compadecem com o clima moral que é preciso manter para assegurar a defesa do Ultramar e garantir a integridade da Pátria. Os senhores governadores civis devem tomar as disposições convenientes para evitar que seja permitido este abuso do direito de reunião por parte das sociedades de recreio e cultura e até por estabelecimentos de educação que o têm convidado e incluído nos seus espectáculos ou reuniões” (cit. in Luís de Freitas Branco, A Revolução Antes da Revolução. O ano que mudou a música popular portuguesa, 2024, pp. 221-222).

Então, tudo mudou: a 1 de Agosto de 1970, na conservatória do registo civil das Caldas da Rainha, José da Felicidade Alves casou civilmente com Elisete Nunes de Ascensão, à data presidente da Liga Escolar Católica; e, no dia seguinte, foi celebrada uma cerimónia religiosa em Vila Franca de Xira, com a presença de uma centena de amigos, entre os quais os padres Abílio Tavares Cardoso, que oficiou aquela cerimónia, e Francisco Fanhais. Em resultado disso, seriam ambos suspensos do exercício de funções sacerdotais e Fanhais foi afastado do ensino.

“Começou o conflito com a Igreja”, recorda ele, dizendo que, quando foi chamado ao tribunal eclesiástico, no Palácio do Patriarcado, onde lhe pediram que se retractasse, não só não o fez como afirmou, garbosamente: “Não, não me apetece, não tenho estômago para responder a isto tudo. As minhas respostas vão ser três frases pequenas. Ponto 1 - Estive presente - se não tivesse estado presente, se eu dissesse “não estive presente”, parava ali tudo; por isso, estive presente, sim senhor. Ponto 2 - Concordo com tudo que se lá passou. Ponto 3 - Estou solidário com todos os que lá estiveram. Assinado: Francisco Fanhais”.

Privado do sacerdócio e do ensino, viu-se no escuro. Chegou a pensar ir vender enciclopédias, foi buscar carros a Espanha, Madrid, Barcelona, ao serviço de empresas de aluguer de viaturas. Em Fevereiro de 1971, escreveu ao padre António Jorge Martins, seu amigo que vivia em Estrasburgo, pedindo-lhe auxílio, mas aquele jamais respondeu, deixando Fanhais magoado. O mistério só seria resolvido muitos anos depois, já após o 25 de Abril, quando, ao consultar os seus papéis na Torre do Tombo, descobriu que a missiva fora interceptada pela PIDE. Num episódio recente e digno de nota: em Abril de 2023, Francisco Fanhais tirou uma fotocópia da carta e, como ia até Estrasburgo, marcou um almoço com o amigo. A meio da refeição, depois de algum suspense, disse-lhe que tinha uma carta para lhe entregar. António Jorge leu a missiva, Francisco justificou-se: “Olha, desculpa, pensei mal de ti, não era assim que se tratam os amigos, mas a culpa não foi tua nem foi minha, foi alguém que se meteu entre nós, desculpa lá”. E deram um grande abraço, ficando ambos em lágrimas.

Antes de abalar para França, Francisco ainda se envolveu num sem-fim de actividades oposicionistas. Entre elas, integrou a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, onde recorda Sophia, experiência que o fez conhecer de perto as agruras das famílias dos perseguidos pela ditadura. Por essa altura, a editora Zip-Zip editava o seu último disco com nome próprio, a compilação Corpo Renascido, título de um poema de Manuel Alegre musicado por Pedro Lobo Antunes: "Cantando é como se dissesse / Estou aqui / Na multidão que está dentro de mim".

Em Abril de 1971, decidiu acompanhar Zeca a caminho de França, com Zélia a guiar o carro. Pararam primeiro em Valência, onde Zeca actuou no Festival da Canção Ibérica, dali seguiram para o Hexágono. Fanhais começou por ficar em Lyon, em casa de amigos, e depois rumou a Paris. Desaguou em casa de um antigo colega de seminário, Fernando Belo, e a primeira pessoa que contactou foi José Mário Branco, que começou a convidá-lo para cantar com ele nos concertos que dava para os emigrantes.

Fez teatro na companhia de Richard Démarcy, participou, entre outras, em duas emissões do programa televisivo “Mosaïque”, centrado na emigração, e ganhava a vida com a música e com uns biscates ocasionais a fazer locução de textos em português para a televisão francesa, chegando a deslocar-se a Londres para o mesmo trabalho, desta feita para a BBC e a convite de Joaquim Letria. Nos espectáculos para emigrantes, por vezes partilhados com actuações de ranchos folclóricos, aproveitava para distribuir propaganda anti-regime, sob os olhares dos informadores da PIDE na capital francesa, que o integraram na lista dos “indivíduos adversos das instituições vigentes em Portugal”, ao lado de nomes como António José Saraiva, Jacinto Rodrigues, Alfredo Margarido, Armindo Cardoso, Luís Cília e José Mário Branco (cf. Luís de Freitas Branco, ob. cit., p. 88).

Em Outubro de 1971, um momento-chave. José Mário Branco convida-o a participar na mítica gravação de Cantigas do Maio, nos Strawberry Studios do Château d’Hérouville, que, reza a lenda, terá albergado os amores de Chopin e George Sand, além de ter sido pintado por van Gogh, sepultado lá perto. Poucos meses antes de Cantigas do Maio ser lá gravado (José Mário Branco conhecia o proprietário dos estúdios, Michel Magne), e mais precisamente em Junho de 1971, estiveram lá os Grateful Dead em grande algazarra, como por lá passaram Elton John (Goodbye Yellow Brick Road, de 1973, entre outros), David Bowie e Brian Eno, os Bee Gees (sim, para a banda sonora de Saturday Night Fever, 1977!) e, claro, José Mário Branco para Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, e Sérgio Godinho para Os Sobreviventes e para Pré-Histórias.

A gravação de “Grândola” foi feita de madrugada, para que o barulho dos automóveis e de outros ruídos não perturbasse o som dos passos na gravilha que existia à porta do estúdio, dados por Zeca, José Mário Branco, Fanhais e Carlos Correia (“Boris”). A letra do “O povo é quem mais ordena” era um poema que José Afonso tinha composto quando, ainda no caminho, regressou de um espectáculo na Sociedade Filarmónica Fraternidade Operária e Grandolense, em 17 de Maio de 1964, onde entoara pela primeira vez “Cantar Alentejano”. Com um frio de rachar, registaram o som dos passos na gravilha, em homenagem ao cante alentejano, que José Mário Branco recordava das férias que na infância passava em Peroguarda. Depois, ao final da tarde, foram para o interior do estúdio e com auscultadores cantaram ao som dos passos. Além do coro de “Grândola”, Francisco Fanhais participou no “Coro da Primavera”, fazendo de tenor.

Quando lhe perguntam hoje que sensação tem por estar associado a uma das músicas emblemáticas do 25 de Abril, responde com habitual modéstia, mas indisfarçável orgulho: “Fico muito contente. Não tenho mérito nenhum em terem sido os militares a escolher aquilo, mas fico contente e tenho um certo orgulho por saber que naquela música estão lá os meus passos e está lá a minha voz também, juntamente com a voz dos amigos que muito prezo. Mas sempre que oiço aquilo, vem-me à memória muita coisa e vem-me à memória a força com que nós cantámos aquilo, a força que nós imprimimos à "Grândola", ao som, aos passos. E depois a dinâmica toda que envolveu a gravação do Cantigas do Maio, etc., o “Coro da Primavera”, vem-me à memória toda essa gravação, mas não posso deixar de recordar e de sentir com muita emoção essa alegria de saber que aqueles passos que nós demos foram um contributo musical e cultural para o desencadear do mais importante que foi o derrube do fascismo”, afirmou à Rádio França Internacional, em 12/3/2024.

Quando já estava no estrangeiro, António Ribeiro sucede a Gonçalves Cerejeira como bispo de Lisboa, futuro patriarca. Francisco Fanhais mandou-lhe um postal, prenhe de simbolismo: uma fotografia a preto e branco de uma bota a esmagar uma flor. No verso, escreveu um poema de João Apolinário, o “é preciso avisar toda a gente, dar notícia, informar, prevenir”, a que acrescentou uma quadra sua, “por cada flor estrangulada há milhões de sementes a florir” e assinou “Respeitosamente, Francisco Fanhais”. D. António Ribeiro disse-lhe, em resposta, que o contactasse quando visse a Portugal. O encontro entre ambos decorreu no Verão de 1971. O novo patriarca começou por dizer-lhe “Estou a chegar à diocese e dei-me conta de que há vários casos complicados, um deles é o seu. Queria saber o que é que se passou”. Fanhais então contou tudo: “participei no casamento do Felicidade; nas músicas, nas canções, não deixo de denunciar a Guerra Colonial; fui proibido a dar aulas no Barreiro, de continuar a dar aulas; portanto, a situação levou-me a que eu, sabendo da impossibilidade muitas vezes que há de a pessoa transformar as coisas por dentro na Igreja - é como querer destruir uma parede de cimento à cabeçada -, resolvi mudar da ares por um pouco e ver que rumo é que havia de dar à vida e fui para a França. Por isso é que fiquei excomungado, por ter participado e não ter negado que tinha participado no casamento do Padre Felicidade”. D. António disse-lhe que, sem quaisquer problemas, lhe levantava a suspensão e que até, se ele quisesse, lhe dava trabalho numa paróquia, mas Francisco respondeu que não, que ainda não terminara o tempo que se dera a si próprio para reflectir. Simpaticamente, o patriarca disse-lhe para continuar a mandar postais, mas Francisco, pouco atento às subtilezas do poder, ou porventura demasiado marcado pela injustiça que sofrera, não percebeu ou não quis perceber a grandeza e a coragem do gesto de D. António, que mal chegado à diocese se propôs revogar a decisão do seu histórico antecessor. Ao invés, interpretou as palavras do patriarca como “uma ironia associada a uma cortesia de despedida, até porque na sequência da conversa percebemos que persistiam muitas divergências em relação a tudo”. E assim ficaram, cada qual para seu lado.

É em França que Fanhais se radicaliza ainda mais, a ponto de aderir à LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), a organização de luta armada liderada por Palma Inácio que, anos antes, em 1967, organizara um espectaculoso assalto à agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz. Francisco Fanhais não adianta muito sobre a sua pertença a esta organização, a qual se inscreve num movimento de radicalização de diversos sacerdotes e leigos católicos um pouco por toda a Europa (v.g., Espanha, Itália), e que em Portugal levou a que muitos “progressistas” ora trilhassem os caminhos da luta armada e da “acção directa”, ou colaborassem com ela, fosse com a LUAR de Palma Inácio e Emídio Guerreiro, fosse com as Brigadas Revolucionárias de Carlos Antunes e Isabel do Carmo. Por uma coincidência curiosa, ou talvez não, seu irmão era um dos tripulantes do paquete Santa Maria, cujo desvio em 1961 deixou Francisco em sobressalto. No entanto, não abundam as informações sobre o seu envolvimento na luta armada: vemo-lo a assinar, em Dezembro de 1973, e ao lado de Manuel Vilaverde Cabral, Fernando Belo, José Mário Branco e Alfredo Margarido, entre outros, um comunicado sobre uma “nova vaga de repressão em Portugal” (in Fernando Pereira Marques, Uma Nova Concepção de Luta. Materiais para a história da LUAR e da resistência armada em Portugal, 2016, pp. 191-192) e José Hipólito Santos, crê-se que erroneamente, identifica-o como “ex-padre operário”, a par de Joaquim Alberto Simões, dizendo que ambos advogavam uma “parceria” da LUAR com os marxistas-leninistas de Jacinto Rodrigues, graças à qual foi possível realizar, com sucesso, algumas operações conjuntas, como os assaltos aos consulados de Portugal em Roterdão e no Luxemburgo (cf. Felizmente Houve a LUAR, 2011, p. 136). Noutra história da LUAR, Luís Vaz não refere o seu nome nas actividades pré-25 de Abril, mas lembra que, em 17 de Maio de 1974, esteve, ao lado de Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira, na “Festa da Canção Socialista e Revolucionária”, realizada no Parque Alameda João de Deus em Faro, onde foi lançado o manifesto daquela força política, e, em 22 de Fevereiro de 1975, abrilhantou o I Congresso da LUAR, em parceria com o eterno Zeca e com Sérgio Godinho [cf. Luís Vaz, A LUAR: da Operação Covilhã (1968) até à extinção da organização (1976), 2023].

Em finais de 1973, no estertor do marcelismo, Fanhais ainda pensou em vir até Portugal, mas a vaga de prisões que se abateu sobre diversos amigos seus, supõe-se que os católicos envolvidos na vigília da Capela do Rato, dissuade-o desse intento.

Por isso, o 25 de Abril apanha-o em França, totalmente surpreso. Telefonou a um amigo, que lhe disse “É pá, não sabes o que se passa em Portugal? Está lá tudo virado do avesso, é uma grande confusão” e mandou-o ligar a rádio. As canções que lá ouviu tranquilizaram-no, não era um golpe da extrema-direita (“não há nenhum fascista que vá escolher as nossas músicas como sinal da sua revolução, não é?”). Regressou às pressas no dia 29 e, no dia 30, pelas seis, sete da manhã, chegou a Vilar Formoso, onde teve logo uma epifania poética: “A estação deserta, ninguém na estação, ninguém autorizado a sair do comboio. Havia só um soldado, com uma espingarda na mão, que andava no cais da estação, batendo os pés para aquecer, que estava frio, para um lado e para o outro, e ali estava eu. A gente abre a janela para respirar pela primeira vez o ar puro do Portugal novo”. Com um amigo que conhecera no comboio, esquerdista como ele, decidem meter-se com o soldado, perguntando-lhe baixinho onde é que estavam os pides. O cabo respondeu com maus modos, cheio de vigor revolucionário: “Oh amigo, fale alto porque este agora é um país livre!”.

Como seria de esperar, mergulhou de cabeça no caldeirão revolucionário, participando nas campanhas de dinamização cultural e num sem-fim de outras iniciativas, sobre as quais, curiosamente, fala pouco, quase nada, talvez porque a recordação das mesmas lhe traga o travo amargo da derrota, quando não do desencanto. Esteve ao lado de Zeca Afonso, sempre, de Adriano Correia de Oliveira, de Vitorino, de José Jorge Letria, de José Barata-Moura, “um grupo de amigos, cúmplices das cantigas, cantávamos em todo o lado”, especialmente “onde havia lutas populares que era preciso apoiar, cooperativas que era preciso ajudar”. No Norte foi mais difícil, devido à presença da “extrema-direita, com a colaboração activa, militante, como antes do 25 de Abril, de muitos elementos da Igreja”. Ainda assim, iam onde lhes pediam, corriam Portugal inteiro, “éramos uns andarilhos”. A produção artística ressentiu-se e, quanto a novos discos, limitou-se a gravar o LP República, em 1975, obviamente com Zeca Afonso, e apenas editado em Itália (nos Estúdios das Santini Edizioni, uma iniciativa conjunta das organizações Il Manifesto, Lotta Continua e Vanguardia Operaia), que se destinava a apoiar a comissão de trabalhadores do jornal República ou, caso este fosse extinto, o secretariado provisório das cooperativas agrícolas de Alcoentre. O disco nunca seria distribuído em Portugal e Fanhais queixa-se que, no pós-25 de Abril, “as editoras estavam interessadas em gravar malta mais nova” (ainda foi a uma reunião numa editora, mas despacharam-no ao fim de um par de minutos). “Nunca mais voltei a gravar e compus muito pouco depois”, confessa, atribuindo essa inércia criativa ao “ser preguiçoso” e ao facto de ter ficado “um bocado desanimado com essas primeiras barreiras para voltar a gravar e tive dificuldade em as ultrapassar” (cf. António Pires, Francisco Fanhais, 2014, p. 41).

Ao invés de falar do que fez no PREC, Fanhais prefere lembrar as vezes que esteve com o Zeca, ou que honrou a sua memória, como aquela em que, estando o autor de “Grândola” já doente, e após uma festa em sua homenagem, um rapaz se aproximou de Fanhais na estação de Viana do Castelo, e lhe mandou um recado: “diz ao Zeca que ele não morre no coração da malta nova.” Chegado a Setúbal, transmitiu a mensagem ao destinatário, ficaram ambos abraçados, obviamente a chorar.

O momento mais pungente, porém, seria o do lendário concerto no Coliseu dos Recreios, em 29 de Janeiro de 1983, organizado pela Cooperativa Era Nova. Na plateia, todos sabiam que o músico estava muito doente, com os amigos temendo que não aguentasse o espectáculo até ao fim. Mas, diz Fanhais, “ele superou-se e foi inesquecível”. Houve até um momento único, entre o presságio e a despedida, quando Zeca Afonso, ao cantar a “Balada do Outono”, entoou os versos "água das fontes calai, ó ribeiras chorai, que eu não volto a cantar" e o Coliseu inteiro ficou suspenso por instantes, num soluço abreviado, ante o poder premonitório do que ouvira.

***

Hoje com 83 anos, pai de dois filhos e de dois netos, “que amo muito”, Francisco Fanhais, um homem simples e bom, vive desde 1984 no Alvito, que louva por dispor “de tudo” num raio de 200 metros, os correios, a farmácia, uma mercearia, a câmara, um café, e por ser uma terra onde não existe uma rotunda nem sequer um semáforo (“e espero bem que ninguém se lembre de instalar aqui qualquer dessas coisas, que o desenvolvimento não é isso”). “Uma vida de sossego”, resume. Preocupam-no, todavia, as injustiças, os populismos, a opressão das minorias, a ineficácia dos governantes, a escravatura em que vivem os migrantes no Alentejo (“é um escândalo”). Professor de Educação Musical desde 1986, actualmente aposentado, em 1995 foi condecorado por Mário Soares com a Ordem da Liberdade. Preside à Associação José Afonso e diz que, se tivesse apenas uns minutos de vida, a última música que gostaria de cantar era “Grândola”. Mantém-se crente, é fã do Papa Francisco, mas desde há muito que deixou de ser padre (“fui-me afastando, fui-me esquecendo, não meti papéis, também não me incomodaram mais e o afastamento, digamos assim, foi mútuo”) ainda que na rua continuem a tratá-lo como tal, coisa que não o confrange. Radioso, luminoso, eterno sonhador e poeta, cita um poema de Fernando Assis Pacheco, "Um homem tem de viver com um pé na Primavera" para dizer que tem “sempre uma satisfação enorme em falar com a malta nova”, contando-lhe a sua experiência de vida. Por isso gosta de ir às escolas, alertar os miúdos sobre o valor da liberdade e pedir-lhes “que estudem e que aproveitem a sua inteligência e a coloquem ao serviço das causas de transformação do país”.

Nas últimas eleições legislativas, o Chega foi a segunda força política mais votada no concelho de Alvito, com 24,82% dos votos. A coligação PCP-PEV ficou em quarto lugar, com 13,06% dos votos, e o BE teve 6,81%. 

Para o meu amigo Rui Carlos Pereira, que me sugeriu esta crónica. 
 
*Prova de vida (49) faz parte de uma série de perfis

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