Formar professores: questões incómodas

Questão magna que poucos na Educação entendem - sobretudo quem tem dirigido as políticas educativas do país - é que, como ensinou Voltaire, e relembram Paulo Freire, Vigotski e, em Portugal, um Mário Dionísio: na relação ensino-aprendizagem o essencial não é "ganhar tempo", mas sim perdê-lo. Não é perda de tempo, em face duma matéria do programa, alargar os horizontes culturais das crianças e dos adolescentes. Não é perda de tempo considerar que, na formação de professores, seja qual for a área, não é perda de tempo estudar a Literatura, a Filosofia (direi, por me parecer mais claro, uma cadeira de História das Mentalidades), a História e a Geografia, a História das Artes, a História da Música. Esta formação plural seria perda de tempo numa formação de professores? Dado a escassa formação cultural de quem ensina, urge realizar um Plano Nacional de Formação de professores que, começando no 1º ciclo, se estendesse aos restantes níveis de ensino. Falemos disso, pensemos sobre isso.

A formação de professores está integrada no 2º ciclo da formação Superior. Mas no chamado "ano probatório", qual a formação (leituras, ensaios produzidos), a que é sujeito um professor? Consultando o site da Escola Superior de Educação de Lisboa, temos os seguintes cursos: a) Licenciaturas em Animação sociocultural; b) Artes Visuais e Tecnologias; c) Educação Básica; d) Mediação Artística e Cultural; e) Música na Comunidade (nome pomposo de um curso para futuros desempregados com alguma formação nesta área?). Mestrados Profissionalizantes, eis: 1) Educação Pré-Escolar; 2) Ensino do 1º Ciclo Ensino Básico (CEB), de Português, História e Geografia de Portugal (2º ano do CEB). Outros mestrados ainda em Ensino da Matemática, Ciências Naturais e em Ensino de Educação Visual e Tecnológica no "Ensino Básico "NOVO"" (suspeito que seja uma nova área de mestrado, bem modernaça). O mestrado que afere das competências para se ser professor é o do 2º ciclo. Todavia, não é claro que disciplinas são facultadas aos futuros professores do 1º ciclo. E do 2º ciclo, diga-se. Apenas a indicação de que ficarão aptos, após os mestrados (integrados nas licenciaturas à bolonhesa), para lecionarem Português, História e Geografia a crianças dos 6 aos 11, 12 anos. Na minha perspetiva, e porque não obtive resposta alguma nos e-mails que enviei à ESEL, não há uma ideia coerente de ensino para a infância e primeira adolescência.

"Se é certo que o professor endeusado não faz sentido numa sociedade democrática, que sentido tem hoje vermos o professor e a Escola como prolongamentos da Segurança Social?"

Olhando para a vacuidade das matérias nos currículos, algum problema se mantém irresolvido há décadas. Problema que é de mentalidades porque oscilamos entre o empedernido provincianismo que nos leva a importar as modas estrangeiras e o não menos provinciano e serôdio ideal de uma lusitanidade educativa. Se sabemos todos que olhar para trás não é remédio e o discurso do "dantes é que era bom" peca por ser falso (não se comparam as nossas escolas de hoje, em termos de infraestruturas, de bibliotecas escolares, de acesso aos meios multimediáticos), a verdade é que, em 2023, como as manifestações de professores atestam, a classe docente olha, não raro, para trás. Exige o respeito que a sociedade civil perdeu e lhe tinha. Pais, alunos, mas também ministros, secretários de Estado, jornalistas, quem, em rigor, vê hoje, no professor, a figura de saber e de autoridade (veiculada e crismada pelo saber) que, até aos anos de 1960, era comum?

Se é certo que o professor endeusado não faz sentido numa sociedade democrática, que sentido tem hoje vermos o professor e a Escola como prolongamentos da Segurança Social? A Escola-Refeitório, nisso se transformaram os estabelecimentos de ensino num país pobre, onde os pais deixam os filhos para ganharem o pão que os governos e empresas amassaram. De quando vem esta perda de prestígio em ser-se professor? Arrisco: do cavaquismo e dos Anos 90 a esta parte. Desprestígio agravado pelo ideal da Escola-Empresa de Maria de Lurdes Rodrigues, defensora do professor-burocrata, do técnico da educação. Passou-se do autoritarismo mais sórdido que caracterizava a relação pedagógica do Salazarismo, para a absoluta falta de autoridade docente na nossa Democracia aos trambolhões. Como prova da anarquia e das medidas de remendo e falta de um projeto de país ancorado numa formação sólida das crianças e jovens, aí está a ausência de formação de professores, de estágios... Falta-nos refletir - sem invejas, sem intrigas entre professores e que tem sido a estratégia política para reinar, dividindo-nos - sobre o como e o para quê ser-se professor em Portugal desde Abril.

Comecemos pelo óbvio: os melhores alunos da Universidade portuguesa não querem ser professores. A serem-no um dia, sê-lo-ão na Universidade. A docência será o caminho paralelo de uma carreira no Direito, ou nas Engenharias, na Economia ou nas Ciências, não o imo da vida profissional. Impõe-se, portanto, atrair os melhores para a profissão docente, e desde logo atraí-los para o 1º Ciclo, pois é na infância que as sementes do saber e da curiosidade devem germinar. Para tal, salários aliciantes devem ser rapidamente promovidos. Assim como deve exigir-se a desburocratização em toda a docência e a redução dos alunos por turma. Tudo em nome do rigor e da excelência que o ME tanto gosta de propalar. Um 1º ciclo com disciplinas que promovam a imaginação, a prática da redação, o interesse pela música, a poesia, a matemática... A Escola, os Infantários, o que oferecem às nossas crianças hoje em idade de construção do mundo? Quantas crianças e adolescentes veem tolhidas a criatividade, a curiosidade e a imaginação nos primeiros anos de escola? Pelo adormecimento das faculdades inteletivas, pela violência que campeia entre jovens (num número recente do DN era manchete a influência das redes sociais nos comportamentos delinquentes de jovens entre os 12 e os 16 anos), direi que temos perdido imensas crianças e adolescentes para as formas mais degradantes de vida em Portugal.

Reina a confusão na formação de professores, com efeitos perversos na formação docente nos 1º, 2º e 3º ciclos, pois não se lê sobre o quê e como ensinar na infância e na adolescência. Vigotsky (Pensamento e Linguagem), Magda Soares (Alfabetização: a questão dos métodos), Paulo Freire (A Pedagogia do Oprimido), muitos escritores que foram grandes pensadores da Educação, são eles lidos nos cursos de formação de professores? Quantos, lecionando hoje, conhecem e leram o ensaio A Educação do Sentimento Poético, de Jacinto do Prado Coelho, axial para todos os docentes de todas as áreas? Lugares-comuns sobre "os nossos meninos" (a linguagem infantil, com ares de caridade cristã para que pais e meninos não tratem mal quem leciona...), o que dá a Escola de cultura e ilustração aos estudantes? Isto anda tudo ligado, dizia um poeta.

Formar professores do 1º ciclo ao 9º ano, que amem os livros porque não perderam a curiosidade e a imaginação, isso é urgente. Professores respeitados porque auferem ordenados que nos possibilitem frequentar a cultura e lecionar com qualidade. Da Escola às Universidades, crianças, adolescentes e jovens adultos estão fartos de a Educação ser o deserto de imaginação e liberdade que é hoje. Seria perda de tempo investir numa verdadeira ilustração? Para os adeptos de uma educação acrítica, acéfala e meramente instrumental sim. Para outros, não.

Professor, poeta e crítico literário

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