Passavam dez minutos das dez da manhã do dia 31 de Maio de 1961, uma quarta-feira, quando a porta da cabina se abriu e o presidente pôs o pé nas escadas. O Boeing 767-153, Air Force One, levava o jovem casal Kennedy até Paris de França, naquela que seria uma viagem memorável, a todos os títulos histórica, ainda hoje lembrada. A recebê-los, uma lenda viva, de outro tempo, o general Charles de Gaulle, homem da França Livre, interlocutor de Roosevelt, Estaline e Churchill, agora investido na chefia duma nação antiga e muito senhora de si, orgulhosa como poucas..A viagem ocorria num tempo de crise para os presidentes de França e da América: dias antes, a 21 de Abril, dera-se o putsch de Argel, o grave complot levado a cabo por vários generais da reserva, que ensaiaram um golpe de Estado contra o presidente de Gaulle, tentando pôr fim às negociações de paz com a FLN argelina; do lado americano, Kennedy sofrera a 18 de Abril o vergonhoso embaraço da Baía dos Porcos, em Cuba, onde fracassara mais uma tentativa de derrubar o regime comunista de Fidel Alejandro Castro Ruiz..Mais ainda, Kennedy fazia uma paragem de três dias em Paris, mas o seu destino final era Viena, onde se iria avistar com o líder da URSS, Nikita Khrushchev. O ambiente era tenso: cinco dias antes tinha sido assassinado Rafael Trujillo, presidente da República Dominicana, e da agenda constavam a crise de Berlim, a questão do Laos e, inevitavelmente, a ameaça de guerra nuclear entre as duas superpotências..Aqueles dias de Paris em Junho foram, assim, um interlúdio radioso e primaveril entre acontecimentos sombrios, um suave reencontro entre o Novo e o Velho Mundo, uma oportunidade ímpar para que França pudesse expor as suas grandezas pretéritas, afirmando-se, também ela, como uma potência respeitável, com voz e autoridade próprias no concerto das nações, capaz de se opor à hegemonia americana na NATO..Mas, do outro lado do Atlântico, a América tinha uma arma secreta, tão letal como uma bomba atómica, que ofuscava os franceses em glamour e requinte. Jackie Kennedy dominou a visita do princípio ao fim, fazendo os De Gaulle parecerem um casal burguês de província, e a sua popularidade foi tal que, a 2 de Junho, na hora da despedida, o marido gracejou com os jornalistas: "Sou o homem que acompanhou Jacqueline Kennedy a Paris, e estou muito feliz por isso." Nada foi improvisado: Jackie preparou-se afincadamente para a visita, estudou a fundo a cultura e a história gaulesas, surpreendeu Charles de Gaulle no almoço do Eliseu, falando com ele em francês sobre Luís XI, Luís XIV, Napoleão. O general felicitaria Kennedy pela sua mulher, dizendo-lhe que ela conhecia melhor a história de França do que muitos franceses. E, no decurso do banquete, quando Jackie lhe perguntou qual fora, entre todas as figuras históricas que conhecera, a personalidade que tinha mais humor, De Gaulle respondeu, impávido: "Staline, Madame.".Nesse almoço memorável, com cerca de 40 convidados, Jackie ficou à direita do presidente, seguida do primeiro-ministro, Michel Debré, tendo De Gaulle à sua esquerda a mulher do embaixador americano, seguida de Couve de Murville, ministro dos Estrangeiros. Todos notaram a pesada ausência de André Malraux, que dias antes, a 23 de Maio, acabara de perder dois filhos num trágico acidente automóvel. Agora, o menu: consommé madrileno, supremos de pregado Régence, pato à la Voisin com corações de alface, soufflé gelado de moka, tudo acompanhado de vinhos Château Haut-Brion 1953, Château Mouton Rothschild 1953, Chambertin 1947 e champanhe Bollinger 1949. Não foram servidos queijos ("como é possível governar um país com 246 variedades de queijo?", disse um dia o general), porque não queria prolongar em excesso um ágape que, ainda assim, durou cerca de hora e meia..No dia seguinte, e a pedido dos Kennedy, jantar de gala no Salão dos Espelhos de Versalhes, para 174 convidados, a quem foram servidos um velouté Sultane, timbale de linguado Joinville, coração de lombo charolês Renaissance, quente-frio de aves, salada de alface romana com estragão e, a terminar, parfait Viviane, com vinhos Riesling 1955, Château Cheval Blanc 1953, Corton Grancey 1953 e champanhe Lanson 1953. Depois do jantar, ballet no Teatro Luís XV de Versalhes, em ambiente feérico. A entrada do presidente De Gaulle no camarote real, dando o braço a uma deslumbrante Jackie Kennedy, fascinou os presentes, entre os quais um jovem e promissor político, Valéry Giscard d'Estaing, para quem "aquele foi dos mais belos espectáculos que se pode imaginar, ver ao mesmo tempo a juventude e a glória de braço dado"..A descrição deste e doutros jantares de Estado franceses é feita num livro literalmente delicioso, À la table des diplomates. L'histoire de France racontée à travers ses grands repas (1520-2015), onde ficamos a saber, entre outras informações de vulto, que nos banquetes da Cimeira do Clima, reunida em Paris em 2015, houve o especial cuidado de escolher vinhos franceses que fossem património da humanidade, ou que, em 2004, na visita de Estado de Isabel II a Paris, foi servido Dom Pérignon 1995, apesar de a monarca preferir gin tónico a champanhe. Em 1957, na primeira visita que Isabel fez a França, quatro anos depois de ser coroada, René Coty serviu-lhe foie gras, que voltaria a ser-lhe oferecido em 1972, desta feita por Pompidou e sob a forma de hors-d'oeuvre, acompanhado de Château d'Yquem. Aliás, desde a visita de Jorge IV, em 1915, os monarcas ingleses são sempre recebidos com foie gras acompanhado de Château d'Yquem, o que tornou a acontecer a Isabel II sendo anfitrião Jacques Chirac, um presidente que, além de reintroduzir as sopas nos jantares oficiais, servia sempre batatas e cogumelos selvagens. Além do socialismo e das nacionalizações, uma das grandes reformas políticas de Mitterrand consistiu em acabar com as sobremesas geladas nos banquetes do Eliseu, mas uma coisa, porém, jamais se mudou: são sempre servidos queijos nas recepções oferecidas a personalidades inglesas, num sinal claro de afirmação do poder gastronómico de França, em contraste com a desoladora paisagem alimentar britânica..Houve muitos outros, decerto, mas se há alguém a quem França fica a dever a sua grandeza culinária esse alguém é Marie-Antoine Carême, nascido em 1784, pouco antes da Revolução, e falecido novo, aos 48 anos, em 1833, diz-se que em resultado de ter passado décadas em cozinhas, a inalar os fumos vindos dos fogões a lenha. Carême foi exemplo, mais um, de uma vida feita contra todas as probabilidades: o pai trabalhava numas obras na rue du Bac, a família tinha 25 irmãos e, quando ele tinha 10 anos, o pai serviu-lhe um bom almoço e, de seguida, abandonou-o junto à barreira do Maine, uma zona murada que, na Paris do Ancien Régime, servia de posto de cobrança dos impostos sobre as mercadorias que entravam na cidade. Foi aí que um taberneiro o encontrou, levando-o para a cozinha do seu estabelecimento, onde Carême subiu a pulso graças ao poder do seu génio, um génio que, entre outros sucessos, o fez passar de analfabeto profundo a bibliófilo erudito e autor de uma obra monumental, onde avulta a gigantesca L'Art de la Cuisine Française, em cinco volumes com centenas de receitas, menus e decorações de mesa, além de uma história da culinária francesa e instruções precisas sobre organização das cozinhas. Em 1798, Carême tornou-se aprendiz de Sylvain Bailly, um famoso pâtissier com loja aberta numa zona distinta, o Palais-Royal, e em 1803 inaugurou o seu próprio estabelecimento, Pâtisserie de la Rue de la Paix. Pressentindo a centelha rara do seu aprendiz, Bailly deixara-o escapar-se nas horas vagas para o Cabinet des Estampes, onde Carême mergulhava na leitura dos tratados de arquitectura da biblioteca imperial..Mais do que um pasteleiro ou cozinheiro, Marie-Antoine Carême foi um arquitecto, como bem nota Michel Onfray em La Raison Gourmande - La Philosophie du Goût, obra que salienta, com denso argumentário, que a culinária não é uma questão meramente alimentar, mas artística e sobretudo filosófica. Arquitecto manqué deslumbrado pelo traço de Palladio ou de Jacopo Barozzi da Vignola, leitor apaixonado de relatos de viagem, Carême transformaria a arte culinária num assombroso exercício construtivo, com pièces montées que deslumbravam pela monumentalidade e graça, como se de verdadeiros edifícios se tratassem, com colunas de vários estilos, capitéis, pilastras ou gradeamentos. Ocupava os tempos livres a conceber projectos de melhoramentos urbanos em Paris e São Petersburgo e chegou a apresentar planos para a edificação de um farol colossal em Bordéus e outro em Calais, uma coluna triunfal para a Place du Carrousel, em Paris, um novo edifício para a ópera..Aos poucos, ganhou fama e, com o passar dos anos, conquistaria o justo título de "cozinheiro de reis e rei dos cozinheiros". As circunstâncias da época favoreceram essa ascensão vertiginosa: não sendo um bom garfo, Napoleão intuíra o poder da comida, incumbindo Talleyrand de fazer do Château de Valençay um lugar para reuniões diplomáticas mais distendidas e informais, nas quais a mesa desempenhava papel fulcral. Talleyrand levou Carême consigo, desafiando-o a reinventar a tradição culinária francesa e a preparar menus para o ano inteiro, utilizando apenas os produtos de cada época. Após a queda de Napoleão, Carême iria para Londres ao serviço do príncipe regente, futuro Jorge IV, e, depois de uma brevíssima passagem pela corte do czar Alexndre I, em São Petersburgo, regressou a Paris, onde foi chef do banqueiro James de Rothschild..Pasteleiro-arquitecto ou "Palladio da pastelaria", como lhe chama Onfray, Carême, o menino abandonado pelo pai nas ruas de Paris, foi o criador da arte culinária francesa tal como a conhecemos. A culinária dos tempos antigos baseava-se essencialmente no olfacto, no gosto dado pelo cheiro das especiarias e dos condimentos, dos eflúvios libertados pelas carnes ou pelos peixes assados no forno. A revolução culinária de Carême converteu a gastronomia numa arte profundamente visual, na qual o odor tem um papel secundário. Eliminou o gengibre e a canela, passou a usar com muito mais parcimónia o tomilho, a pimenta, o louro, a noz-moscada e o cravo, cuidou com rigor da apresentação dos serviços e das mesas, remodelou o modo de elaboração dos molhos, agora mais espessos e encorpados, alterou as designações de muitos pratos, intuindo certeiramente que o nome do que comemos influencia decisivamente o nosso paladar e gosto. Acima de tudo, simplificou a culinária, procurando que os alimentos tivessem o sabor natural, fiel à célebre máxima "cozinha é quando as coisas sabem àquilo que são"..Carême e os seus sucessores, com Escoffier à cabeça, fundaram a culinária da idade burguesa, com refeições que aos olhos de hoje surgem como pesadíssimas, e que na época vitimaram um sem-número de cavalheiros com indigestões selvagens, apoplexias fulminantes, enfartes arrasadores. O epitáfio foi dado em Outubro de 1973, quando os críticos Henri Gault e Christian Millau assinaram o manifesto para uma nouvelle cuisine francesa, versão gastronómica da atracção soixante-huitarde pelo "novo" (nouveau roman, na literatura; nouvelle vague no cinema). Paul Bocuse, cozinheiro que Gault e Millan conheceram em 1964, seria o arauto desta corrente de vanguarda, cujo sucesso se deve também a outro crítico, André Gayot, e sobretudo ao beneplácito presidencial de Valéry Giscard d'Estaing..Nos nossos dias - e ao contrário do que sucedia nos tempos de Carême e de Napoleão, mas também nos de Charles de Gaulle e Jackie Kennedy ou até de Giscard d'Estaing -, o Estado e os poderes públicos deixaram de estar à cabeça dos grandes movimentos culinários e, em termos mais vastos, da conformação do gosto e dos hábitos dos cidadãos. As actuais catedrais gastronómicas já não são, como outrora, os palácios reais ou presidenciais e os banquetes de Estado deixaram de ser vistos como a quintessência culinária de uma nação. Os chefs têm os seus restaurantes com estrelas Michelin, não são cozinheiros de príncipes ou de presidentes e nunca como hoje a gastronomia e a culinária foram tão populares e tão democráticas. Num estranho movimento, a culinária converteu-se em religião, e a religião em culinária. Da mesma maneira que a crença no transcendente, quando ainda existe, é cada vez mais autoconstruída ("a minha fé") com base no que já se chamou "bricolage religioso" ou "religião à la carte", em que cada qual cozinha o que mais gosta, misturando ingredientes católicos ou condimentos protestantes e judaicos com espiritualidades orientais, meditações zen e tretas de autoajuda, podemos hoje alimentar-nos da forma que quisermos, sushi ou mexicano, carnívoro ou vegano, pois assim o permite a abundância e a variedade das sociedades de consumo, associadas à globalização dos sabores, que não dos valores. O declínio de uma culinária "oficial", pública (e até, em certa medida, de uma culinária "nacional"), é indissociável da privatização do gosto, que corre a par, curiosamente, da privatização da fé religiosa. Numa entrevista recente ao El País, o filósofo Peter Sloterdijk disse que muitos cidadãos do Ocidente dão hoje absoluta prioridade ao privatism, o conforto da vida privada - de que a gastronomia é exemplo máximo -, e deixaram de acreditar em ideologias ou na política, resignando-se aos tristes líderes que temos. Sloterdijk refere o caso de Boris Johnson, que todos já perceberam tratar-se de um palhaço, mas que todos preferem não levar a sério ao invés de lutarem pela sua queda. É estranho, na verdade, que, perante tantas notícias de festas e bebedeiras, não existam manifestações gigantescas em Londres a exigir a demissão daquele mentiroso encartado. Quanto mais desistirmos da política, mais ela desistirá de nós..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia