Filhos de Tuga

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O documentário Filhos de Tuga, realizado por Catarina Gomes e João Gomes e estreado na RTP1, lança luz sobre uma das páginas mais negligenciadas da história contemporânea portuguesa: os milhares de filhos deixados para trás por militares portugueses em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau durante os treze anos da Guerra Colonial. Na casa dos cinquenta, sessenta anos, estas pessoas nasceram de relações entre soldados enviados por Portugal e mulheres africanas que, terminada a guerra, ficaram sozinhas com filhos cuja existência o Estado português nunca reconheceu.

Chamam-lhes “filhos de tuga” - expressão que passou a ser sinónimo de rejeição e de exclusão nas sociedades africanas. Cresceram sem conhecer os pais, muitas vezes sem sequer saber o nome do progenitor. Foram vítimas de um abandono cúmplice: primeiro, por parte dos homens que regressaram ao continente europeu deixando para trás laços de sangue; depois, por um Estado português que optou pelo silêncio em vez da responsabilidade.

A série documental, de Catarina Gomes em corealização com João Gomes, direção de fotografia e cor de Carlos Isaac, edição de Rita Karayianni, produção executiva de Joaquim Vieira e produção de Mafalda Espanca, acompanha histórias reais na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique. Conduz-nos por geografias da ausência e interroga-nos sobre a herança do passado. Muitos destes filhos continuam à procura de respostas. Procuram rostos em fotografias antigas de batalhões; escrevem cartas a embaixadas; organizam cerimónias nos cemitérios coloniais africanos, onde prestam homenagem ao “Pai Desconhecido”. Procuram apenas o que a muitos parece simples: a verdade, o nome e a filiação.

O tema traz consigo as cicatrizes da violência colonial, das hierarquias raciais, da urgência militar que sobrepunha o dever à humanidade. E continua infelizmente atual. Há quem ainda hoje, meio século depois, lute por documentos, por nacionalidade, por uma identidade que o país teima em negar.

Neste ano em que celebramos os cinquenta anos das independências africanas, Filhos de Tuga obriga-nos a olhar à volta e fazer uma pergunta desconfortável: o que dizemos às vítimas esquecidas de um processo que nos orgulhamos de ter encerrado com Abril? Que justiça estamos dispostos a fazer a quem carrega no corpo e na alma as marcas da guerra, mas nenhuma medalha nem reconhecimento?

Este documentário não é apenas uma revisitação do passado. É um espelho para o presente. É uma convocação para pensar a responsabilidade histórica e para dar rosto aos que sempre foram invisíveis. Ao trazer estas histórias à televisão pública, “Filhos de Tuga” cumpre uma missão de verdade e de escuta que, enquanto comunidade, temos a obrigação de continuar.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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