João Vale de Almeida, que foi embaixador da UE nas Nações Unidas, e agora publicou O Divórcio das Nações , respondeu-me assim a uma pergunta sobre se ainda há espaço para o multilateralismo, uma longa argumentação: “A minha frase preferida em relação às Nações Unidas atualmente é dizer que não devemos deitar fora o bebé com a água do banho. E a água do banho é uma crise fundamental. As Nações Unidas, em alguns momentos recentes, estiveram muito perto da irrelevância, mas se nós deitarmos o bebé fora com a água do banho, com o que é que ficamos? Somos capazes de recriar, de refazer as Nações Unidas? Não me parece. Ou seja, antes de deitarmos o bebé, deitemos a água fora, vamos tentar melhorar as coisas, mas vamos tentar preservar o bebé para que ele possa crescer quando as condições forem mais favoráveis. Mas é preciso entender que as Nações Unidas não podem funcionar se o Conselho de Segurança não funcionar. E o Conselho de Segurança não funciona se os seus membros permanentes - os P5 - não funcionarem. Quando os membros permanentes são a causa da crise das Nações Unidas, como por exemplo a Rússia, quando viola claramente a Carta das Nações Unidas de forma sistemática nos últimos anos, ou a China boicotando alguns eixos de ação, ou os Estados Unidos funcionando à margem da Carta, é evidente que os P5 não funcionam, e se os P5 não funcionam o Conselho de Segurança não funciona. E se o Conselho de Segurança não funciona, as Nações Unidas não funcionam, a começar com o secretário-geral. As pessoas muitas vezes dizem: ‘Ah, o secretário-geral, por que é que ele não faz mais?’ O secretário-geral tem o poder que o Conselho de Segurança lhe dá, e que a Assembleia-Geral lhe dá, mas sobretudo o Conselho. Então não podemos pedir ao secretário-geral que faça omeletes sem ovos. E, de facto, o Conselho de Segurança não está a dar esse mandato, claro, e esse apoio e essa solidez de que o secretário-geral precisa”.Vale de Almeida é português. Foi um alto-funcionário da União Europeia, chefe de Gabinete de Durão Barroso quando este presidiu à Comissão Europeia, e serviu igualmente como embaixador da UE nos Estados Unidos e no Reino Unido. Ser um português, e com toda esta experiência diplomática, a defender a ONU é muito relevante, porque mostra como para um país como Portugal, e para a maioria dos países do mundo, é importante uma organização internacional, com regras, um palco onde todos podem falar com todos. Na realidade, mesmo as grandes potências têm interesse em que exista a ONU, ou não fosse o estatuto especial que têm no sistema, o famoso direito de veto dos P5, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, ou seja Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França. Mesmo as outras grandes potências, excluídas em 1945 desse clube restrito por razões históricas várias, assumem a ambição de um dia terem assento permanente no Conselho de Segurança, e falo sobretudo da Índia e Brasil, também do Japão e da Alemanha, mas não só.No caso de Portugal, que só em 1955, já em plena Guerra Fria, aderiu (integrado num pacote de países negociado pelos Estados Unidos e pela União Soviética e que incluiu, entre outros, a Espanha e Itália, e também a Roménia e a Bulgária), o empenho na construção do multilateralismo tem sido a regra, nomeadamente desde que a chegada da democracia em 1974, e a descolonização que se seguiu, acabaram com os tempos difíceis de isolamento na Assembleia-Geral. Desde então, por três vezes o país conseguiu ser eleito como membro não-permanente, e agora é candidato a novo mandato, para o biénio 2027-2028, com um site oficial que expõe muito bem o compromisso nacional com o multilateralismo, sob o lema “Prevenção, Parceria, Proteção”.O sucesso de Portugal na ONU, visível não só nas vitórias na corrida ao Conselho de Segurança, mas também na eleição com grande mérito de António Guterres para secretário-geral, é o retorno merecido de um envolvimento naquilo que é importante no multilateralismo, como a participação nas operações de paz. É também o reconhecimento do papel de construtor de pontes que Portugal teima em fazer, através de uma diplomacia de altíssima qualidade, contrariando a tendência para a fragmentação do mundo em blocos, o tal “divórcio das nações” de que fala João Vale de Almeida. E o mais louvável é que o país se empenha no multilateralismo sem abdicar dos valores que são os do Portugal democrático, do Portugal europeísta, do Portugal atlantista, do Portugal aberto aos outros continentes graças à sua História e aos laços que a lusofonia hoje nos oferece.Esta quarta-feira à tarde, na sede do Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, realiza-se a conferência Portugal, 70 anos na ONU (1955-2025), uma excelente oportunidade não só para se debater o que foi a participação portuguesa nas Nações Unidas desde 1955, mas sobretudo o que pode ser o contributo de um país como o nosso para salvaguardar uma organização que, mesmo que critiquemos as discussões bizantinas no Conselho de Segurança, e o abuso do veto, tem toda a outra ação decisiva que vai da vacinação corajosa da OMS em terrenos inóspitos e perigosos ao papel de socorro junto dos refugiados desse ACNUR que Guterres liderou antes de ser escolhido para secretário-geral em 2017.Diretor adjunto do Diário de Notícias