Fauda: a ficção-doc sobre o ódio em Gaza 

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Para quem quiser ver a impossível tarefa de invadir Gaza com um exército terrestre, alguns episódios de Fauda mergulham-nos por dentro deste caos do Médio Oriente. Porque nesta notável série de quatro temporadas (Netflix), a perceção do ódio generalizado, e da luta quarteirão a quarteirão, retrata a realidade que os israelitas vão encontrar - tanto mais que retirar um milhão de pessoas do Norte de Gaza para a bombardear e limpar de snipers é uma tarefa impossível. Porque Gaza é, à escala do século XXI, mais do que um beco sem saída de 2,5 milhões de pessoas. É o terreno fértil de recrutamento de vinganças contra o vizinho opressor, o laboratório do terrorismo iraniano e de todas as organizações que pretendem destruir - é esta a palavra - a civilização ocidental em Israel representada. Mas é também uma terra repleta de escudos-humanos que não podem ser abatidos, nem tratados como se vivessem num campo de concentração.

Os criadores da série, os israelitas Avi Issacharoff e Lior Raz, retratam, em Fauda, o caos israelo-árabe a partir de um núcleo de operacionais de serviços secretos clandestinos em Telavive, uma espécie de braço armado da Mossad, cuja missão é exatamente a que falha neste ataque de 7 de Outubro: abortar atentados de grande dimensão. Ora, nenhum serviço secreto consegue evitar 100% dos ataques e é significativo que este tenha assentado em duas premissas: pouca tecnologia (são homens com metralhadoras) e aconteceram a poucos quilómetros da fronteira - não se tratou de um ataque químico ou uma ogiva nuclear. Ou seja, apesar da brutalidade desencadeada, ela não resulta de nada muito sofisticado, exceto no que significa ter tanta gente disposta a morrer numa operação desta envergadura.

O desespero cria soldados-suicidas com grande facilidade em Gaza. E mais: Israel sabe que por cada líder morto do Hamas, outro se levanta, ainda mais feroz e criativo. E, no meio deste braço-de-ferro permanente, está sempre à vista, minuto a minuto, a total impossibilidade de cada lado ver a perspetiva do outro e optar por não responder. Por isso mesmo, esta é a maior e mais eterna guerra do nosso planeta. Um confronto dentro da História, fruto de uma luta étnico-religiosa entre Javé e Alá que nenhum aplaca.

Por esta altura Telavive não consegue planear outra coisa que não uma resposta brutal, para que fique na memória de que o crime não compensa. Foi assim em julho de 2006, aquando do rapto, pelo Hezbollah, de soldados israelitas na fronteira com o Líbano. O que se seguiu foi uma chuva de bombas, por 34 dias, sobre as casas dos líderes palestinianos. Hassan Nasrallah, líder da organização que liderava o Hezbollah na época, era recordado ontem no New York Times por esta confissão à televisão libanesa em agosto de 2006: "Não pensávamos que a captura [de dois soldados israelitas] levaria a uma guerra nesta altura e desta magnitude. Se me pergunta: se eu soubesse que a operação levaria a esta guerra, faria isso? Digo não, absolutamente não."

Hoje, no entanto, já não há espaço para recuos ou arrependimentos. Continua sem haver um projeto de vida possível para quem vive em Gaza, Israel é cada vez mais suscetível ao discurso extremista, e países como o Irão (e a Rússia) jogam milhões naquele tabuleiro para construir uma nova desordem internacional. Fauda deixa à vista apenas no que se traduz o modus operandi de ambas as partes: matar líderes e as suas famílias, gente anónima ou importante, numa escala de vinganças incessante. Até que algo de absolutamente devastador suceda como vitória final. De quem?

Jornalista

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