Eutanásia: Motivação de um jovem investigador pelo tema

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A academia está a mudar. Uma dessas transformações diz respeito ao seu crescente interesse por contributos autobiográficos de investigadores sobre as suas motivações por temas como o da eutanásia e os temas diretamente implicados. O principal objetivo é compreender como as experiências estão a construir a próxima geração de cientistas, que parte cada vez mais de abordagens multidisciplinares. Neste texto, partilho a motivação de um jovem investigador, de 27 anos, no início da sua carreira científica, alargando a discussão em curso à sociedade civil.

Faltavam poucos minutos para as 8 horas do dia 16 de junho de 2022, dia do Corpo de Deus, quando recebo uma chamada. Já sabia do que se tratava, apesar de nunca se estar preparado. Há três dias que a Judy, a minha mãe e melhor amiga, com 56 anos, se encontrava na fase da agonia. Esta fase é utilizada na medicina para identificar, com o surgimento de uma multiplicidade de alterações simultâneas (delírio, estertor, dor, incapacidade para comunicar, ausência de apetite e sede, entre outras), as últimas horas ou dias dos doentes em fim de vida ou em estado terminal. Atendo. Do outro lado ouço uma voz tremelica e embargada: “Bom dia, falo com o Senhor Bruno? (…) A sua mãe faleceu esta noite”. Sabia que, a partir daquele instante, a minha mãe já não sofria mais, mas não o que me esperava.

Começo a partilha desta forma, uma vez que o meu interesse pelo tema da eutanásia está associado à morte da Judy. Filho único e com pais divorciados, vivi sempre com a minha mãe desde os meus 11 anos, na Marinha Grande. Cresci sem ser batizado, embora os meus pais fossem católicos não praticantes. Eles entenderam que me caberia decidir se deveria ou não ser batizado quando fosse adulto, tomando uma escolha consciente e de livre vontade. Concordava com a perspetiva deles e o assunto nunca me incomodou ou despertou curiosidade.

Nos últimos anos, a Judy teve alguns problemas de saúde graves que implicaram várias baixas médicas prolongadas. Esses períodos podem ser divididos em três fases. Em 2008, uma depressão após o divórcio, seguida de uma tentativa de suicídio. Em 2019, um surto psicótico devido à cessação de medicação psiquiátrica levava-a um internamento compulsivo e à descoberta do síndrome depressivo com contornos de bipolaridade. Em 2020, um diagnóstico de Linfoma difuso de grandes células B (um cancro do sangue).

De todos os seus problemas de saúde, o mais complexo foi o cancro. Na altura, o país atravessava a segunda vaga da pandemia de Covid-19, eu estava a tirar o mestrado em Jornalismo e Comunicação - Investigação Científica, na Universidade de Coimbra. As aulas eram online, o que me permitiu acompanhá-la nos tratamentos nos Hospitais da

Universidade de Coimbra. Foi um período bastante difícil, porque também éramos só nós os dois para um balanço global deste tipo: 15 sessões de quimioterapia, 7 hipóteses terapêuticas, 40 viagens até Coimbra, IPO do Porto e Hospital de Santa Maria em Lisboa, e 3 pedidos de ajuda ao INEM devido a efeitos adversos.

A certa altura, foi-me comunicado que já não havia mais nada a fazer em termos de tratamentos curativos. O seu organismo já não reagia aos tratamentos. Sobrava a opção de a transferir para uma Unidade de Cuidados Paliativos, algo que acabou por nunca acontecer. Se, por um lado, a fila de espera é longa, por outro, os atuais apoios concedidos por parte do Governo e o processo de morrer em contexto hospitalar são questionáveis. O Linfoma começou a metastizar-se, espalhando-se e infiltrando os outros órgãos. Na semana em que surgiram os primeiros sintomas de que o período terminal tinha chegado com a fase da agonia, tive de começar a mentalizar-me e a pensar no funeral. Uma pequena nota: não é disponibilizado qualquer tipo de apoio psicológico à família.

Naquela altura, não tinha grande cabeça para estar a pensar nisso, tendo conhecido uma pessoa que me auxiliou no processo e com quem criei uma amizade. Mais tarde, decidi começar uma vida nova, bem longe de todos os lugares e cidades que me trouxessem recordações diretas. Marinha Grande, Leiria e Coimbra saltavam automaticamente para fora da equação. Com a entrada no Doutoramento em Ciências da Comunicação no Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, essa pessoa continuou a dar-me apoio, sugerindo e auxiliando todos os preparativos para a mudança.

A amizade não arrefeceu com a distância, pelo contrário, tornou-se cada vez mais forte. Não só com ele, mas também com a sua esposa e sogra. Falávamos várias vezes por semana e comecei a passar fins de semana com eles, numa aldeia perto de Fátima. Aos poucos, fomos aprofundando laços de amizade até ao momento em que comecei a ver neles uma família. Na presença de um contexto familiar distinto, percebi que eles tinham uma convivência diferente. O facto de serem católicos, de terem o hábito de ir à missa, de rezarem diariamente o terço e falarem de Deus. Só que eu naquela altura não negava a existência de Deus, mas também não acreditava que Ele existisse.

Ao início, causava-me alguma estranheza o porquê de tanta devoção. A minha vivência de fé começou, então, desse contacto. Deus começa a surgir, naturalmente, nas nossas conversas. Tendo eu gosto pela investigação e de Deus não ser possível dar evidências científicas, como sabemos, confrontava-os com perguntas. De início, fui muito provocador no sentido de questionar se aquilo em que eles acreditavam era mesmo assim ou não, procurando identificar incongruências nas suas respostas. Em momento algum, senti qualquer tipo de pressão. Eles conheciam a minha história, mas, principalmente, respeitavam o meu espaço.

Passados uns meses, já em Lisboa, começo a refletir. Como pode uma pessoa que não acreditava em Deus ser acolhido, aos 25 anos, por uma família católica ou residir num colégio católico? A resposta fácil seria que estava perante coincidências. Muitas ao mesmo tempo. Fiquei mais atento para as coisas que me iam acontecendo. Aos poucos, fui-me interessando pelos assuntos de Deus e, por considerar que tem sido Deus a operar muitas dessas graças, servindo-se de acontecimentos e de pessoas especiais, preparei-me, através de catequeses para adultos, e recebi os sacramentos da iniciação cristã recentemente.

Infelizmente, a fé não se explica, sente-se. E os investigadores não são imunes ao seu contexto, mas possuem todos os meios para que estes elementos não condicionem a investigação que conduzem. Tenho a plena consciência de que o motivo pelo qual escolhi investigar a mediação jornalística da eutanásia em Portugal e no Reino Unido no doutoramento é fruto destas experiências.

Se perante o sofrimento que assisti principalmente no estado terminal da minha mãe, me inclinava para ser favorável à despenalização da eutanásia, a verdade é que, com entrada da fé na minha vida, não tenho uma opinião formada e consolidada sobre o tema, mas muito interesse para saber mais sobre o mesmo e partilhar esse conhecimento. A investigação mostra que muitas dimensões do tema vão entrando no debate público da eutanásia e que este é um fenómeno que está longe de ser explicado.

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