Estados desunidos da Europa
Fosse pela paz, por causa da democracia, para ancorar o destino ao Ocidente, ou para fazer mais comércio, em cada momento da História cada país que escolheu construir ou entrar para a União Europeia (UE) fê-lo por diferentes razões, mas todas elas compatíveis entre si. Com a excepção dos britânicos, que tiveram sempre muitas dúvidas, essa percepção tem sido estável, maioritária e suficiente. Mas pode já não ser.
Há um ano e meio, a então recém-eleita Ursula Von der Leyen anunciou uma Comissão Geopolítica. Ao dizê-lo poderia estar a declarar que a União Europeia tinha noção de que a escala do mundo que importava à Europa era global e que era nesses termos que os europeus teriam de pensar e decidir em conjunto. A visão de Ursula Von der Leyen, porém, era essencialmente geoeconómica. A sua Europa geopolítica queria acelerar a transição energética para liderar a economia verde e promover a transição digital a pensar na concorrência à escala mundial e na necessidade de criar campeões europeus. Esta visão do mundo é a mais compatível com a ideia que a União Europeia tem de si própria, fundamentalmente económica. Mas pode ser insuficiente num mundo mais conflituoso.
As duas últimas crises expuseram duas fracturas entre os europeus. A crise das dívidas soberanas dividiu os europeus entre os que consideram que a crise foi fundamentalmente causa de más escolhas nacionais e os que culpam o modelo económico, e em especial os constrangimentos da moeda única. Esta divisão, que tanto atravessa a Europa como os próprios Estados membros, desfez a convicção generalizada de um benefício diferente mas comum da participação na União Europeia. Pela primeira vez, parte da Europa culpa a Europa pela crise e pela violência da sua superação. E acusa uns de beneficiarem do mal dos outros. Ou, ao contrário, de viverem às suas custas.
Na política externa, a pandemia veio acelerar o confronto e a competição entre as duas grandes potências, ao mesmo tempo que Rússia e Turquia se redefinem como actores regionais fortemente desestabilizadores. Ser um grande mercado aberto e uma potência normativa que deixa para os americanos o trabalho mais sujo não é suficiente. Acontece que gregos e alemães têm uma percepção muito diferente do que a Turquia representa, estónios e franceses olham para a Rússia com memórias absolutamente distintas, enquanto que Portugal e a Irlanda, ou mesmo Espanha, têm dificuldade em perceber os dramas continentais. E cada um destes países tem interesses particulares na sua relação com a China. É esta diferente realidade, e não a forma de decidir, que inviabiliza uma política externa europeia verdadeiramente comum.
Construir um mercado interno onde cada qual compra e vende o que quer e pode é muito mais simples do que convencer os europeus de que o interesse externo de uns tem de se submeter ao interesse externo de outros, quando estão em causa questões existenciais e não compatíveis. Essa fractura, que sempre existiu, está agora mais exposta. E a resposta continua a não ser óbvia.
Pode-se deixar andar, até que uma divisão fundamental se torne insuportável e provoque um divórcio ou prove a inexistência externa da União; impor centralizadamente a definição do interesse europeu, na expectativa de que os Estados se submetam livremente, ao arrepio da História; esperar pacientemente que o tempo faça emergir uma noção comum de ameaças e riscos, algures lá longe no tempo; ou ir colaborando onde há acordo e deixando a União de fora do que não é comum, reduzindo-a ao que é: uma união de Estados com interesses nem sempre partilhados.
Nenhum destes caminhos é ideal, mas há uns manifestamente piores que outros. Talvez o regresso a um mundo dividido obrigue a acelerar o processo.
Consultor em assuntos europeus