Na verdade, tirando os jovens que não conseguem fixar-se nas cidades (ou mesmo nas periferias), ou os inquilinos despejados, ou os idosos que vão sendo pressionados a sair do centro, isto estava a correr bem. Demasiado bem. A receita do turismo e o investimento estrangeiro no imobiliário ultrapassou os sonhos de qualquer ministro das Finanças e quase tínhamos superavit no ano passado. O milagre trouxe um preço: uma tensão quanto à desproporcionalidade entre os sacrifícios dos que não cabem nas grandes cidades e os ganhos dos que venceram no mercado imobiliário. Uma convulsão social e geracional..Os Governos existem para dirimir conflitos que o mercado não resolve. Em circunstâncias normais seria absurdo limitar as autorizações de alojamento local a 2030, tal como impedi-las fora de Lisboa e Porto. Só que, como impedir que mais casas vão parar a esta monocultura económica?.Já os novos benefícios fiscais ao arrendamento tentam abrir espaço a mais contratos estáveis a jovens universitários, casais sem habitação ou estrangeiros. Mas os bónus para contratos de longa duração são risíveis. Ainda assim, quanto mais queremos gastar neste abaixamento de taxas fiscais para que sejam mesmo eficazes?.O rescaldo do pacote Habitação atira-nos então para uma zona cinzenta: talvez ninguém fique satisfeito a curto prazo. É que, ao contrário da inflação, do défice, e até das consequências económicas de uma pandemia - onde se consegue mover a oferta e a procura a partir da massa monetária -, no caso das casas, nada é imediato. São imóveis e pouco flexíveis..Além disso, há uma ferida ainda por sarar totalmente na vida dos portugueses vivos em 2023: a bancarrota e a troika. Em 2010, o sector da construção e obras públicas em Portugal valia 18% do PIB. Caiu para 6%. A banca cortou o crédito, empresas faliram, o desemprego aumentou. Tivesse o ritmo de desenvolvimento do setor ficado mais ou menos constante e teríamos nesta altura cidades com mais casas recuperadas, mais edifícios novos, mais residências universitárias. Se há coisa que funciona em Portugal é o mercado imobiliário. Toda a fileira conjugada vale hoje 25% do PIB!.Quanto à situação financeira de 40% das famílias portuguesas que têm crédito à habitação, a verdade é que os apoios à subida dos juros são provavelmente demasiado tímidos e talvez precisem mais do que o teto de 720 euros. Já a melhor medida deste pacote é aquela que admite o falhanço colossal do sistema judicial e coloca a melhor máquina pública - o Fisco - atrás dos inquilinos que não pagam, promovendo de imediato também o despejo. Esta é verdadeiramente a medida que pode mudar o sistema e colocar uma parte das 700 mil casas devolutas no mercado (embora, sejamos realistas, muitas delas estejam longe dos grandes centros)..Se este mecanismo do arrendamento funcionar, talvez não seja preciso insistir na bomba "2030" quanto à revisão de licenças no alojamento local. O pânico sobre arbitrariedades nos critérios - ou mesmo corrupção -, não me deixaria dormir descansado até lá se tivesse um investimento nestes imóveis. Achar que isto não pode acontecer, é não se conhecer o país..Por isso o capital de queixa, sobretudo deste setor empreendedor, continuará a demolir António Costa. Por sua vez, ele sabe que o sucesso do PS nos próximos quatro anos se joga muito nestas medidas da habitação. Endireitar algo tão complexo como o mercado imobiliário seria um grande trunfo político. Ninguém se lembraria em 2026 que, num remoto 2022, houve um annus horribilis para os socialistas..Jornalista