É lugar mais do que comum apontar a excessiva tribalização que passou a dominar o debate político, não apenas por cá, que costumamos seguir as modas, mesmo as piores, com um certo atraso. O encapsulamento das facções em confronto, encerradas no seu “quadrado”, encarando todas as outras como inimigas irredutíveis, em especial quando se adopta uma lógica maniqueísta, reduziu qualquer capacidade de diálogo produtivo. Os debates tornaram-se meras oportunidades para sublinhar o já sabido, de forma a assegurar aos já convencidos que se mantém as posições, sendo relativamente periférica a preocupação em recrutar novos adeptos com a apresentação de argumentos articulados e fundamentados de forma racional. Porque o que está em causa é assegurar a mobilização emocional dos “nossos” contra os “outros”, apresentados como perigosos inimigos. Sobre isso, escreveu Umberto Eco que: “Ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, no afrontá-lo, o nosso valor. Portanto, quando o inimigo não existe, há que construí-lo. (…) nesta ocasião, não nos interessa tanto o fenómeno quase natural de identificar um inimigo que nos ameaça, quanto o processo de produção e demonização do inimigo.” (Construir o Inimigo, Gradiva, 2011, p. 12)..Em campanha, enunciam-se narrativas previamente definidas, nas quais não pode surgir brecha, pois se receia que assim a muralha colapse. Porque se ergueu uma muralha. Anatemizam-se críticos e qualificam-se como blasfémias as mais ligeiras beliscaduras nos dogmas. Quem nos critica só pode pertencer aos “outros”, ao “inimigo”, pois os nossos cerram fileiras, aconteça o que acontecer, porque a lealdade se sobrepõe à verdade, a emoção à racionalidade..Nada de mais errado, entendo eu, que cedo me ensinaram que devemos ser mais rigorosos e exigentes com os nossos do que com os outros, se acreditamos mesmo que eles são melhores ou o podem ser. Talvez por ter crescido num ambiente no qual, apesar da modéstia social, se exigia mais do filho do que do amigo do filho. Da família do que dos vizinhos. Não é que não se escrutinem as acções e palavras alheias, que a falsidade nunca deve ser perdoada, muito menos quando acontece de forma voluntariamente cruel. Mas aos nossos aprendi que se deve exigir mais, que só os ajudamos verdadeiramente a crescer e melhorar se lhes dissermos no que falharam ou o que podiam ter feito melhor. Não com o intuito de amesquinhar, mas inversamente, de fazer engrandecer sem ser na base do panegírico acrítico..Por isso, continuo a não conseguir entranhar certas reacções indignadas, quantas vezes encenadas, sempre que alguém ousa apontar uma falha na forma de argumentar, uma evidente incoerência no agir, desta ou daquele candidato a mandar na nossa vida, naquilo que a Europa ainda permite. Porque de imediato surge a barreira de metralha sobre o renegado, o blasfemo, o que só pode ser um agente do inimigo..Já agora… quando alguém opta por uma vida pública, em especial quando existe o desejo e a pretensão de se querer ocupar cargos políticos com o poder de decidir sobre a vida de milhões, continuam a manter-se fronteiras entre essa vida pública e a esfera da privacidade. Mas é necessário reconhecer que elas se movem um pouco (ou mesmo muito) em relação aos cidadãos ditos “comuns”, sendo parte do “território” estar-se preparado para o tal escrutínio. Nem que seja da coerência entre o que se afirma e o que se faz..Não é que se pretenda ter gente absolutamente impoluta e asséptica na vida política, porque todos os humanos têm imperfeições e falhas variadas, nisso se formando a sua individualidade, mas sim que exista a capacidade de se assumirem os erros quando eles são evidentes, justificando-os se necessário. Não os negando como se isso fosse sinal de fraqueza. A força faz-se da ultrapassagem das dificuldades e a capacidade de governar de forma esclarecida demonstra-se no modo como se encaram os problemas, sem os camuflar ou a recorrer a truques de linguagem para os relativizar. A grandeza é isso mesmo, não o contrário.