A última Assembleia-Geral das Nações Unidas confirmou o que era evidente desde janeiro: os Estados Unidos estão a retirar-se da liderança internacional e a adotar uma política externa marcada pela imprevisibilidade. Na ONU, o discurso do presidente Trump mostrou que Washington já não pretende ser a âncora da ordem liberal internacional e olha com crescente desconfiança para a Europa. Este duplo movimento abriu um vazio que outros se apressaram a preencher.Quem melhor o soube aproveitar foi a China, apresentando-se na AGNU com uma narrativa coerente e disciplinada sobre a defesa do multilateralismo “centrado na ONU”, a rejeição do confronto entre blocos, o reforço das cadeias globais de desenvolvimento e o compromisso climático.Ao mesmo tempo, a recente reunião da Organização de Cooperação de Xangai evidenciou a ambição chinesa de construir um sistema alternativo, baseado na soberania absoluta, na não ingerência e numa promessa de estabilidade pragmática. A China apresenta-se, assim, como um parceiro atrativo para quem procura um modelo distinto dos princípios democráticos liberais.Perante uma América retraída e uma China assertiva, a Europa enfrenta uma escolha histórica: continuar como ator secundário ou afirmar-se como líder de uma nova narrativa global aberta, democrática e capaz de estabelecer entendimentos onde outros erguem muros. Porque o mundo não precisa de mais blocos mas de novas pontes.A Europa deve dialogar com todos os atores internacionais, incluindo potências autoritárias, porque os grandes desafios globais como o clima, a tecnologia, a segurança ou as pandemias exigem uma cooperação ampla. Mas esse diálogo tem de assentar numa visão própria de criação de um mecanismo fluido de colaboração entre democracias, capaz de unir países de diferentes regiões e estádios de desenvolvimento em torno de valores partilhados como o Estado de direito, os direitos humanos, a sustentabilidade e a justiça social. Esse mecanismo deve mobilizar democracias como o Canadá, o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália, e também democracias do mundo em desenvolvimento como a Índia, Indonésia, Brasil, México, África do Sul ou Chile que, em conjunto, representam a maioria da população mundial e partilham o interesse comum de preservar uma ordem internacional aberta, cooperante e baseada em regras.Mas para exercer este papel, a Europa precisa primeiro de se olhar ao espelho. Uma liderança global exige um exercício profundo de avaliação das suas limitações, da sua ambição estratégica e da sua capacidade de reforma e necessita de acelerar os processos de decisão, superar divisões internas e alinhar interesses nacionais com um verdadeiro projeto comum.E, acima de tudo, exige reanimar a vitalidade das suas democracias. As sondagens recentes revelam cansaço cívico, desconfiança crescente nas instituições e ascensão de forças populistas e nacionalistas. Este desgaste interno fragiliza o projeto europeu, corrói o consenso democrático e limita a credibilidade da Europa no mundo. Uma União que não consegue mobilizar a confiança dos seus próprios cidadãos dificilmente inspirará confiança nas outras regiões. Sem vitalidade democrática interna, não haverá legitimidade externa. Sem coesão, não teremos liderança global.Mas só o conseguirá se souber quem é, o que quer e como se quer reformar. E se for capaz de revitalizar a fé dos europeus na democracia, mostrando que ela continua a ser o melhor instrumento para garantir liberdade, justiça e prosperidade. Sem essa clareza e confiança, a Europa arrisca-se a tornar-se espectadora da nova ordem global. Com elas, poderá tornar-se a força estabilizadora de um século XXI em transição. Professor Convidado IEP/UCP e NSL/UNL