Entre marido e mulher não metas a colher?!!!

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As mulheres espancadas têm o medo colado aos pensamentos e o vazio preso ao olhar (85% das vítimas de violência doméstica são mulheres). São mulheres que vivem em prisão domiciliária, encarceradas no terror e não participam nas manifestações que se fazem por elas. O dia 25 de novembro foi o dia internacional pela eliminação de violência contra as mulheres. Todos os anos se assinala esta data sem que se consiga suprimir de vez a violência de género. Até novembro de 2023 foram assassinadas em Portugal 25 mulheres e todas tinham um histórico de violência que era conhecido de vizinhos e familiares. Eram mulheres que sofriam tormentas às mãos dos companheiros, algumas teriam porventura já feito queixa, enquanto outras, sentindo imensa vergonha e dor -- no fundo, no fundo, estariam convencidas ou convenceram-nas de que lhes cabia em parte a responsabilidade pela situação -- nunca ousaram dar esse passo. Estes números deveriam levar-nos a refletir sobre as razões que fazem com que muitas destas mulheres permaneçam paralisadas ao lado do agressor, sem sequer apresentarem queixa. Por mais que tenhamos uma legislação avançada, e temos, é necessário compreender os processos que estas mulheres sofrem para depois atuar com base nessa compreensão. E tanto estou a referir-me a juízes e polícias como a pessoas comuns que testemunham atos de violência, tendo em conta que a violência doméstica é um crime público.

As relações íntimas implicam expectativas implícitas de que de as pessoas se irão mutuamente apoiar. O amor comporta, por inerência, sentimentos de segurança. Por isso, quando acontecem os primeiros episódios de violência, estes são habitualmente interpretados como incidentes. Esta versão dos acontecimentos é reforçada pelos pedidos de perdão e pelas repetidas declarações de amor do agressor. Para muitas mulheres, o comportamento do marido é tão dissonante com a sua anterior história relacional que elas negam a sua relevância. De episódica, a violência passa a sistemática e o marido começa a associar os seus comportamentos agressivos às atitudes dela. O agressor justifica-se pela necessidade de a calar, de a punir por não saber cozinhar, por não mostrar respeito, por não ela não estar sexualmente disponível, etc. A violência é desencadeada por motivos cada vez mais triviais, sendo exercida por meio de ataques físicos, mas também por modalidades psicológicas. Essas formas da agressão incluem a desvalorização da mulher, o controle sobre o que ela faz, a proibição de se relacionar com outras pessoas, inclusive a família, acusações de infidelidade, intimidações e insultos. Na sua necessidade de demonstrar poder e superioridade, o agressor olha para a mulher como um objeto, negando a sua subjetividade. Cada episódio de agressão desencadeia nas mulheres agredidas sentimentos de choque e confusão. A violência prolongada conduz as vítimas a uma desesperança aprendida que diminui gradualmente a sua capacidade para pensarem claramente, conceberem formas alternativas de vida e controlarem o que lhes acontece. Como resultado, muitas delas entram em depressão e convencem-se de que a tentativa de abandonar o agressor só desencadeará vinganças ainda piores. A sua impotência é reforçada pelo medo das represálias do marido, pelo sentimento de vergonha e de solidão com que lidam com estas situações. O desespero e a incapacidade para reagir são uma consequência inevitável como acontece sempre com aqueles seres cuja dignidade vai sendo continuamente destroçada. Compreender a extrema vulnerabilidade psicológica destas mulheres, que vivem diariamente um nível de stress não muito diferente do das vítimas de tortura, é fundamental para lhes proporcionar ajuda. Só assim será possível interromper o ciclo de violência e de submissão a que estão sujeitas. A diminuição de casos desta natureza passa também por pôr em causa uma certa mentalidade coletiva que se reflete em ditados populares como por exemplo "entre marido e mulher não metas a colher" ou "quando mais me bates mais gosto de ti". A história de cada mulher espancada comporta uma luta esgotante para sobreviver. O seu olhar vai-se apagando para tudo que não seja o seu medo. O desespero é tão intenso que não vê maneira de alcançar a salvação. Cabe a cada um de nós que conheça um caso desta natureza dar o seu contributo para que a história mude de rumo.

Professora do Ispa - Instituto Universitário e escritora

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