Durante anos, a política portuguesa habituou-se a ouvir uma palavra repetida com a regularidade de um refrão: ética. E, quase sempre, dita pela mesma voz. Marques Mendes transformou a ética num conceito portátil, transportado de estúdio em estúdio, como se fosse um manual indispensável para a sobrevivência da República. Falou dela com convicção, com gravidade e com uma insistência que faria inveja a qualquer campanha de sensibilização cívica. A ética, na sua versão, tornou-se omnipresente - quase abstrata, quase decorativa.O problema das palavras muito usadas é que acabam por gastar o significado. Quando a ética passa a ser um slogan, corre o risco de se transformar em ruído de fundo. E é aqui que a realidade, teimosa como sempre, resolve intrometer-se. As recentes revelações públicas e amplamente noticiadas sobre negócios paralelos, esquecimentos declarativos, avenças e recebimentos levantaram dúvidas legítimas sobre a coerência entre o discurso ético e a prática pessoal de Marques Mendes. Nada que os tribunais tenham de decidir aqui, mas suficiente para que o debate político - esse sim - não possa fingir que não ouviu.Porque ética, em política, não é apenas cumprir a lei no limite mínimo; é respeitar princípios básicos como integridade, transparência, imparcialidade e boa-fé. E quando alguém constrói durante décadas uma autoridade moral assente na ideia de que “sabe o que é melhor para o país”, qualquer sombra de incoerência pesa mais do que em quem nunca se apresentou como farol moral da nação.É neste contraste que surge Gouveia e Melo, quase como um erro de casting no guião habitual da política portuguesa. Não vem de estúdios, não fala em mantras, não repete slogans. Traz consigo um currículo onde a ética não é pronunciada - é exercida. Décadas de serviço militar, liderança em contextos reais de crise, decisões tomadas sob pressão e responsabilidade direta por pessoas, recursos e resultados. Na vida militar, a ética não é opinativa nem retórica: é operacional. Cumpre-se ou falha-se. E quem falha não volta para comentar ao domingo seguinte.A comparação torna-se inevitável e, para alguns, desconfortável. De um lado, a ética performativa, cuidadosamente articulada, repetida até à exaustão e agora confrontada com explicações difíceis sobre interesses, rendimentos e esquecimentos. Do outro, a ética do dever, silenciosa, austera e validada por uma carreira onde a responsabilidade não se terceiriza nem se comenta - assume-se.Não se trata de santificar ninguém, mas de reconhecer uma evidência política: o país está cansado de professores de moral que tropeçam nas próprias lições. A confiança pública não se reconquista com mais discursos sobre ética, mas com exemplos claros de coerência entre palavra e ação. Quando alguém vive da autoridade moral, qualquer fissura torna-se estrutural.E isto é particularmente relevante quando se fala da Presidência da República. Há cargos onde errar é humano; há outros onde o erro se torna institucional. Um Presidente não falha sozinho - arrasta a credibilidade do Estado. Por isso, a exigência ética não pode ser apenas declarativa. Tem de ser visível, verificável e consistente ao longo do tempo.Gouveia e Melo não promete ensinar ética ao país. Limita-se a praticá-la, com a frieza de quem sabe que o dever não precisa de publicidade. Marques Mendes, pelo contrário, ensinou ética durante anos - e é precisamente por isso que hoje se vê julgado à luz dos próprios critérios que impôs aos outros.Talvez seja este o momento de a política portuguesa perceber que menos discurso e mais exemplo não é populismo - é maturidade democrática. Porque a ética não se mede pela frequência com que é pronunciada, mas pela facilidade com que resiste ao escrutínio. E, nesse teste, há diferenças que já não cabem em estúdio.