Entre a retórica e a realidade

Publicado a

No discurso empolgado que antecedeu a aprovação do Orçamento, o Ministro da Reforma do Estado exibiu indicadores de crescimento, procurando legitimar a reforma com a matemática do otimismo. No entanto, a aritmética não substitui a anatomia do Estado e é precisamente essa anatomia que continua ausente do plano oficial.

O Governo proclama que simplificar é eliminar barreiras. Contudo, simplificar implica compreender o sistema e a maior parte dos bloqueios não vive nos códigos legais, vive na desarticulação estrutural de serviços que não comunicam entre si. Os silos informacionais constituem ainda o próprio esqueleto de um Estado fragmentado, incoerente e incapaz de acompanhar o ritmo real da vida dos cidadãos.

A digitalização surge no discurso oficial como a solução mágica, mas quando os processos estão errados, digitalizá-los apenas os torna mais rápidos a falhar. A tecnologia sem arquitetura, interoperabilidade e qualificação converte-se numa máquina de frustração. A “má burocracia” por vezes muda de forma sem desaparecer e torna-se ainda mais opaca.

É urgente acelerar a “boa burocracia” através da substituição e desintermediação de certidões por mecanismos máquina-a-máquina (M2M), evitando que os cidadãos funcionem como mensageiros entre os serviços. O verdadeiro valor público exige normas comuns, liderança técnica e compromisso efetivo com a interoperabilidade. Sem colaboração ativa entre os serviços, a M2M corre o risco de se transformar num anúncio de modernização sem alcançar a devida mudança estrutural.

O Governo insiste na confiança, embora confundir confiança com desregulação comprometa o interesse público. A confiança constrói-se com transparência, escrutínio e direitos assegurados. Isso implica reforçar e não fragilizar os mecanismos de controlo interno e externo, que são essenciais para garantir imparcialidade, legalidade e integridade.

Reformar o Estado não significa libertar-se do controlo para agradar a lobbies que pedem decisões mais rápidas a qualquer custo. Ouvir sectores económicos é saudável, mas governar em função das suas pressões coloca em risco a equidade e o equilíbrio institucional.

É neste quadro que o iGov, com a sua inovação, inteligência, interoperabilidade, integridade e inclusão, se distingue do atual discurso governamental. O iGov coloca o cidadão no centro, não como utilizador obediente, mas como participante ativo, sempre com respeito pelos mecanismos de auditoria e fiscalização indispensáveis a uma democracia madura.

A inteligência artificial é apresentada como promessa de agilidade. Sem princípios éticos, supervisão robusta e reflexão política, a IA tende a reforçar assimetrias e dependências tecnológicas. O perigo não reside na tecnologia e sim na ilusão política de que os algoritmos podem substituir a reflexão humana.

A reforma laboral é celebrada como motor do dinamismo económico, embora se ignore que a modernização digital exige trabalhadores valorizados e administrações públicas com capacidade estratégica e compromisso com o serviço público, sem equipas esgotadas e submissas, nem cortes camuflados de eficiência.

O Ministro garante que esta é a reforma do crescimento. Porém uma reforma do Estado mede-se pela capacidade de garantir direitos, proteger dados, prevenir desigualdades e servir as pessoas com dignidade. Quando estas dimensões são ignoradas, o que se apresenta como mudança é apenas cosmética política.

Reformar o Estado significa investir num futuro que não se constrói com números agradáveis nem com promessas tecnológicas fáceis. Ergue-se com coragem para enfrentar interesses instalados, com escuta ativa dos cidadãos e com a lucidez de compreender que a tecnologia só moderniza quando fortalece a democracia de todos, sem jamais a contornar apenas em proveito de alguns.

Especialista em governação eletrónica

Diário de Notícias
www.dn.pt