Ensino do Direito em Portugal (II): os números e os desafios
Na semana passada escrevi aqui sobre o que me parece ser uma distorção da rede do ensino público universitário do Direito, com apenas cinco licenciaturas disponíveis, cobrindo exclusivamente a faixa litoral entre Lisboa e Braga. E como isso representa uma desigualdade provavelmente inaceitável para estudantes provindos de outras partes do território, desde logo Évora, Beja ou Faro. Tive, como esperava, comentários de colegas, a maioria deles pouco encorajadores para a minha tese. Que o ensino do Direito é uma coisa muito séria e que exige escolas com grande densidade e professores especialmente preparados, disseram-me, por exemplo – o que me causa algum espanto, já que “até Medicina” se ensina no Algarve ou na Covilhã, sem que creia que essa Medicina seja feita de impreparação ou de uma vaporosa materialidade. Na verdade, é o mesmo argumento que levou a que a Espanha colonial criasse universidades na Guatemala (1676) e em Cuba (1719) e que por aqui se continuasse apenas com a boa e velha Coimbra, a nossa impoluta lusa Atenas, até ao século XX.
Há em Direito, provavelmente mais do que noutras áreas, a assunção da propriedade plena dos seus cultores em relação ao que ensinam e onde ensinam e a vivência estruturalmente endogâmica e autossuficiente das nossas faculdades para isso muito contribui, a par da proximidade, quando não identidade, entre a escola e o poder, num ciclo de vantagens recíprocas. Vejo isso mesmo na minha faculdade – um exemplo simples e evidente: apesar de serem lecionadas cadeiras como Economia, Ciência Política, Finanças Públicas, História das Relações Internacionais, Economia Internacional, Relações Internacionais, História das Ideias Políticas ou União Económica e Monetária... não há um único docente destas cadeiras que não seja de Direito nem vontade de o procurar. Não é que os colegas ou as aulas sejam más. Pelo contrário, creio. Mas este tipo de autocentramento e de assunção exclusiva de propriedade do que é por natureza inapropriável, a coberto da autonomia universitária – essa virtude que se descobre principalmente na sua capacidade paroquial de gerar e manter emprego –, comum a todas as universidades, tem consequências, desde logo quanto a um bom aproveitamento de recursos públicos e, também, em relação ao acesso efetivo ao conhecimento e à melhor formação.
Propunha, na semana passada, que se reduzissem as vagas nas cinco licenciaturas públicas em Direito existentes, a favor da criação de uma nova oferta no sul do País, provavelmente na Universidade do Algarve. Mas uma proposta idêntica de redistribuição pode ser feita pensando também nas Universidades dos Açores e da Madeira: em 2023, da Madeira ingressaram nas licenciaturas em Direito no Continente (e apenas no ensino público) 50 estudantes; dos Açores, 42. Mas o número de candidatos a colocação é muito superior: 345 da Madeira, 231 dos Açores (dados da Direção-Geral do Ensino Superior). Há pelo menos duas das cinco licenciaturas públicas no Continente com apenas cerca de 100 vagas, Minho e Nova de Lisboa. Não justificariam desde logo estes números a criação de licenciaturas em Direito na Madeira e nos Açores? E até cursos inovadores, associados ao Turismo, ao Mar, ao Ambiente, às particularidades das microjurisdições, às migrações e movimentos de pessoas (basta ver onde vive boa parte dos açorianos e dos madeirenses)? Até porque, vimos no texto anterior, a decisão dos estudantes sobre onde estudar rege-se essencialmente por um critério regional, de proximidade da sua residência, supondo maior adequação económica à nova fase de vida, proximidade da família, etc. O instrumento para criar um país e um ensino superior idealizado por alguns, feito de campus verdejantes e professores pensativos de colete, a dezenas de quilómetros da civilização, onde os estudantes da elite mundial se internam durante uns anos, a beneficiar do privilégio de contactar com os génios deste mundo e a criar as suas redes de solidariedade profissional - ah, o mérito! – para os anos futuros... não é certamente a nossa rede de ensino superior público de Direito.
E, já agora, onde se descobririam os professores? Cumpre-se a lei em vigor: abrem-se concursos públicos, que são sempre internacionais, permitem-se acumulações com serviço docente noutras faculdades, se necessário, e contratam-se docentes convidados.
Pode bem ser que as ferramentas de ensino à distância e a inteligência artificial tornem em breve a universidade numa outra realidade, deixando de ser um lugar que se frequenta e passando a ser essencialmente um serviço que se presta. Neste momento, ainda não é assim. Quando o for, porque será, seguramente que também o sul do território continental e as Regiões Autónomas terão nas suas universidades as melhores pessoas para tomar as melhores decisões, que a infalibilidade não é um exclusivo do Campo Grande ou da Porta Férrea.