Reflexão sobre a Guerra na Ucrânia (6)

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Análise da ameaça russa à Europa 

A guerra na Ucrânia era uma tragédia anunciada, que podia ter sido evitada caso o eixo euro-atlântico e a Rússia não tivessem encarado de forma negligente e ostensiva as dimensões política, doutrinária, estratégica, legal e ética. Com efeito, a sucessão de erros estratégicos e de avaliação, associados ao fracasso da diplomacia conduziram ao confronto armado. E fingir que o Ocidente tem sido bem-sucedido é caminho para o desastre.

A UE com a ilusão da paz perpétua impediu uma estratégia de contenção da Rússia e potenciou a fragilidade da defesa europeia, substituída pela subserviência aos EUA com a garantia do guarda-chuva nuclear. Putin soube explorar as vulnerabilidades da Europa espartilhada por interesses conflituantes, profundas dissensões dissimuladas pela solidariedade selectiva e inexistente dimensão geopolítica. E, apesar dos erros estratégicos, tem sido subestimado, sendo o político que melhor gere os tempos e a comunicação.

Foi esta complexa combinação de factores e manifesta incapacidade em lidar com a Rússia como é, e não como gostaríamos que fosse, subestimando Putin, que conduziu à encruzilhada em que se encontra a Ucrânia e a Europa. Não estava preparada em 2014, teve um enorme sobressalto em 2022, com a NATO a "entrar em coma induzido". E arrisca-se a ter um rude despertar a partir de 2025 perante o silêncio e hipocrisia dos cúmplices.

Desde 2022 os debates sobre como enfrentar a ameaça russa variam conforme as percepções dos objetivos da invasão e do tipo de ameaça. Entender e avaliar a ameaça da Rússia devia ser uma prioridade para minimizar o risco de os líderes ocidentais a exacerbarem ou desvalorizarem como no passado. Tal análise exige uma reavaliação periódica do poder e potencial militar pelo Intelligence, que fracassou ao longo de décadas.

A eficácia da ameaça resulta principalmente das fragilidades dos membros europeus da NATO que não cumprem os compromissos com a aliança com implicações na capacidade de dissuasão. Contudo, invadir um país da Europa membro da NATO é um absurdo. Por um lado, não se enquadra no pensamento estratégico russo, porque não faz parte dos seus interesses vitais de segurança como a Ucrânia. E, por outro, Putin sabe que a resposta seria esmagadora pela enorme diferença de potencial militar. 

Ainda assim a continuação da guerra na Ucrânia representa riscos de escalada que só podem ser neutralizados complementando a dissuasão militar com um esforço diplomático, dado o enorme arsenal de armas nucleares da Rússia, o que torna qualquer escalada num potencial conflito directo entre a Rússia e a NATO. 

Neste quadro, não deixa de ser inquietante assistirmos aos avisos de guerra entre a Rússia e o Ocidente que se multiplicam com retórica alarmista. E às sistemáticas declarações incendiárias do secretário-geral da NATO que, sendo de duvidosa legitimidade, criam a percepção na liderança e opinião pública russa que a aliança é parte do conflito.  Na prática, há muito que as suas capacidades estão ao serviço da Ucrânia, tendo recentemente sido afirmado que a NATO fornecerá sistemas de defesa aérea estratégica

Mark Rutte afirmou de forma vocal, que a Ucrânia “precisa de armas e não de ideias sobre a paz”, alertando para a necessidade de “mentalidade de guerra”. Isto só pode significar preparar a guerra, em tempo de paz, que vem do tempo dos romanos. No entanto, a UE ignorou este aviso durante décadas, porque proliferam falcões travestidos que, enquanto líderes de governos, incentivaram o discurso de inutilidade das forças armadas (FA) e de desinvestimento na defesa europeia, afetando a capacidade de dissuasão. 

As suas declarações imponderadas são graves a dois níveis: perspectiva ameaças, no curto prazo, que podem comprometer a missão da NATO, sendo inaceitável revelar vulnerabilidades; e como funcionário da organização não está mandatado para falar em nome dos líderes da UE e nacionais nem tampouco da Europa que extravasa a aliança atlântica. A um secretário-geral exige-se comunicação estratégica adequada e honestidade intelectual para revelar as evidências que ultrapassem a retórica inflamada.

Além disso, os membros da NATO têm obrigação de se preparar e manter a prontidão para o cumprimento das missões. Daqui também se pode inferir que os aliados estão em incumprimento do Tratado de Washington, tendo em conta o seu articulado. Casos como este acontecem com a passividade dos líderes eleitos, porque as democracias europeias estão em declínio irreversível numa UE que caminha para a irrelevância estratégica.

Aquela postura serve os interesses dos que alimentam a máquina de guerra de Washington, mas a avaliação da ameaça não é credível. Na verdade, a Rússia é ameaça potencial e não real, pois a diferença de poder agregado entre a UE, a NATO e a Rússia favorece a Europa. Ademais, a análise do artigo do insuspeito Quicy Institute explicita de forma objectiva a falta de evidências que fundamentem a ameaça da Rússia invadir a Europa. E nem sequer deseja o seu envolvimento numa guerra directa com a NATO.

Considerando, que a ameaça é o produto da capacidade pela intensão, então os limites das acções de Putin definem as suas ambições para entender o risco da ameaça– efectiva ou potencial -e quais as que refletem simplesmente a sua imaginação. As avaliações das intensões de Putin são geralmente desligadas das considerações sobre as capacidades para as concretizar a menos que recorra ao emprego de armas nucleares. Putin é apelidado de perigoso, mas o artigo da Foreign Affairs faz uma síntese interessante “estratega racional que teve de se ajustar às restrições em que é forçado a operar”.

Neste contexto, não há indícios técnicos da vontade em querer atacar a Europa. E, mesmo com intensões veladas, a Rússia tem capacidades limitadas evidenciadas pelos seguintes factos: (i) dificuldades na Ucrânia, com maior território reivindicado do que consolidado; (ii) possível colapso da economia, pese embora seja a quarta economia mundial com crescimento do PIB de 3,6% em 2024; (iii) os países europeus, mesmo sem os EUA, superam em muito a Rússia em economia, armamento e gastos militares. O maior desafio é potenciar as capacidades militares e sustentar a indústria de defesa europeia.

Acresce que os instrumentos de hard power e soft power da Rússia apresentam debilidades que limitam as suas ambições imperialistas, como se viu no Médio Oriente. Um dos objetivos de Moscovo visa impedir que estados pós-soviéticos se integrem na órbita ocidental, sendo percepcionada como ameaça à segurança da Rússia ou ao regime de Putin, especialmente diante da onda de expansão democrática na Eurásia. Por isso, a principal ameaça russa é a que se revela nas acções não cinéticas híbridas para fragmentar a UE. 

Mais do que a ameaça real da Rússia, as declarações de alguns líderes revelam a intenção explícita de criar apoio público para gastos massivos na defesa dos países da UE e no rearmamento, no velho princípio “assustar o povo” da Doutrina Truman. Ou seja, amplificar a ameaça para criar a percepção favorável aos líderes políticos na opinião pública sobre as difíceis opções orçamentais e acelerar o processo de mudança que visa recuperar décadas de desinvestimento nas FA, dando garantias exigidas pela indústria de defesa e interesses associados.

Há ainda uma enorme incoerência discursiva entre uma Europa de joelhos perante a Rússia que a quer invadir e os que vaticinavam a sua derrota ou a fragilidade da sua economia para sustentar a guerra prolongada. De facto, quem ajoelha a Europa são os EUA que beneficiam com a guerra pela dependência energética e compra de armamento. Curiosamente, as fragilidades e limitações amplamente difundidas pela elite dominante são ignoradas pelos falcões de Washington e Bruxelas que centram a sua narrativa criativa nas intenções de Putin e interpretações sofisticadas sobre as próximas invasões da Rússia. 

É hora de a Europa assumir como prioridade a própria defesa nas suas múltiplas dimensões para restabelecer a capacidade de dissuasão efectiva o que implica discutir a dissuasão nuclear autónoma dos EUA. Porém, a defesa europeia não se reduz à ameaça russa, sendo o flanco Sul, no médio prazo, potencialmente mais perigosa que a leste. Importa ainda ter presente que a dissuasão não pode trazer estabilidade a menos que seja acompanhada da diplomacia para evitar crises e impedir a escalada de tensões com a Rússia.

O tempo corre impiedoso para fazer ouvir a força da razão, caso contrário continuaremos na instabilidade do confronto híbrido e espiral nuclear volátil entre a dissonância euro-atlântica e uma Rússia assertiva com incentivos para explorar as vulnerabilidades. Os líderes europeus deviam saber, que a arrogância e incoerência associados à ignorância é estultícia explosiva numa UE, sem poder, que precisa reinventar a bússola perdida. 

*Capitão-de-Fragata (R) 

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