Reflexão sobre a Guerra na Ucrânia (5)
Implicações na NATO, UE e Portugal
O regresso de Trump, sem rédeas, inicia uma era sombria numa lógica da realpolitik alimentada pelo populismo histriónico e messiânico que acelera o fim da ordem liberal e a reconfiguração política da União Europeia (UE). E representa a transição disruptiva de poder no sistema internacional anárquico, cujas implicações estratégicas a UE não se preparou como revelou a guerra na Ucrânia.
Com efeito, persiste a miopia estratégica e a inépcia relativa à segurança, substituída pela subserviência aos EUA, com inquietante falta de visão e dissensões políticas numa relação paradoxal com antagonismos e contenção mútua entre aliados, que será exacerbada por Trump. O pânico em Bruxelas resulta da dependência dos EUA na dimensão energética, tecnológica e de segurança e de ter delegado a base industrial na China.
A UE, a várias vozes e sem bússola, está numa crise existencial com clivagens na encruzilhada do pântano da burocracia e da competição entre os EUA e a China com a afirmação da Rússia, estando desarmada ao nível político-diplomático e militar. Exige-se clareza estratégica e liderança firme.
Prevê-se, que a política externa de Trump seja errática e assente na “Paz pela Força", utilizando a economia e a energia como arma associada à diplomacia musculada e às forças armadas (FA) com repercussões nas relações transatlânticas, na vizinhança da UE e na dinâmica global, onde a China é o desafio estratégico.
Ainda assim, Trump e o seu ethos nacionalista hiperbólico podem ser a centelha para a UE se emancipar e fazer mais pela economia e segurança, como enfatiza Elbridge Colby, o cérebro da politica externa. Esta exigência tem décadas e os seus líderes deviam preocupar-se mais no que podem fazer para evitar o declínio.
Não haja ilusões sobre a urgência e a extensão das transformações, que exigem uma abordagem multifactorial e estratégia adequada. Não obstante os líderes europeus resistem em enfrentar a realidade como revelam António Costa e Luís Montenegro ao referirem-se à “média do conjunto” como meta. Terão de ser convincentes com Trump, que não quer suportar 68% das despesas e pretende o aumento para 3% do PIB.
A complacência representa um desafio para Washington, que tem um plano para forçar a liderança europeia a sair de seu devaneio. Perspectiva-se uma UE que terá de assumir a sua defesa ou a hibernação da NATO com a retirada de tropas, mantendo a protecção nuclear e poder aéreo. E poderá ser mais implacável com eventual escalonamento da aliança para os que não cumprem com 2% do PIB, estabelecido há uma década. O enorme défice resulta da falta de cultura estratégica, que conduziu à percepção da inutilidade das FA.
Convém lembrar, que aquela meta é uma referência comparativa, sendo essencial que esse valor esteja associado a capacidades. E, há ainda, um outro requisito exigido pela NATO, que não é falado, relacionado com a estrutura dos orçamentos de defesa, sendo 20% em investimento considerado crucial para a escala e o ritmo da modernização. Todavia, Trump que exige maior investimento ameaçou retaliar os europeus se insistissem no Fundo de Defesa.
Por outro lado, a UE acusa os EUA de lucrarem com a guerra na Ucrânia, sendo factual que passaram a vender mais gás com custos muito superiores com Biden criticado por beneficiar o complexo militar-industrial. Mas Trump vai prosseguir o mesmo guião com o armamento e o lobby energia.
O fracasso da abordagem ao conflito vai impactar a UE, sendo obrigada a assumir o esforço para o qual não está preparada, face à débil economia e indústria de defesa e à instabilidade política e financeira de vários países. É de sinalizar que o Zeitenwende fracassou com impacto estratégico nos outros países europeus.
Os enormes desafios exigem que a UE mude a forma de pensar o poder na defesa dos seus interesses e valores. Tal só será possível se souber balancear o soft power com o hard power (poder militar e económico), que lhe confere a dimensão geopolítica, capacidade de dissuasão e projecção da influência global.
Neste contexto, urge repensar a defesa europeia com uma nova concepção da defesa colectiva e soberania partilhada, reforçando a dissuasão estratégica e a cooperação numa relação funcional e complementar com um novo consenso institucional, que ultrapasse a dissonância atlântica, através da europeização da NATO. A autonomia estratégica encerra ambiguidade, sendo essencial evitar a clivagem entre atlantistas e europeístas para não comprometer a flexibilidade de actuação autónoma.
Importa investir em capacidades de defesa, de acordo com as necessidades e prioridades numa lógica conjunta e racional com o foco na interoperabilidade evitando a duplicação sem pôr em causa a especificidade geoestratégica dos países. A defesa deve ainda estar ancorada na indústria de defesa alinhada com a nova política industrial, que permita alavancar a economia como recomenda o relatório Draghi. É crucial eliminar rivalidades e adotar uma visão integrada para obter a economia de escala e potenciar a inovação tecnológica.
Contudo, há um longo caminho para atingir a prontidão, sendo o mais urgente a forma de financiamento. A UE não pode ficar resignada e vai ter de tomar decisões difíceis, fazer opções esclarecidas e definir prioridades se quer evitar a irrelevância. O argumento da unanimidade na decisão é falacioso, servido para justificar a inépcia.
Em Portugal as prioridades são outras e reina a falta de reflexão, prevalecendo as polémicas, sem preparar a sociedade para o período conturbado que condiciona o seu futuro. Não se discute o que é estrategicamente decisivo. E disso é exemplo a estratégia de defesa (CEDN) desatualizada, em dez anos, com a agravante do conceito estratégico da NATO ter sido aprovado em 2022.
O CEDN devia clarificar, sem sofisma, as opções e prioridades do Estado em matéria de defesa e relações internacionais, permitindo enfrentar os desafios com postura estratégica preventiva e decisiva na prontidão, na modernização e na estrutura das FA decorrentes do nível ambição e das missões com as consequências para o sistema de forças que deixe de ser ficção. E manter a correlação entre os objetivos da política de defesa nacional, as linhas de ação estratégica militar e as finalidades, capacidades, meios e recursos atribuídos.
Em tempo de guerra nas fronteiras da Europa é pungente ver a elite política a escamotear factos ou ignorar a realidade com as sérias implicações estratégicas, económicas e tecnológicas. A componente civil da defesa e a literacia em segurança– a incluir na Educação- têm de ser regeneradas. Urge fazer pedagogia sem demagogia!
Os governantes esquecem a falta de credibilidade perante os aliados. A realidade é que dedicamos apenas cerca de 1% do PIB em defesa. O resto são artifícios contabilísticos e argumentação falaciosa dos governos, tendo António Costa -muito vocal na UE -sido o responsável pelo País não cumprir a meta de 2% do PIB.
O aumento no investimento na defesa implica saber gastar melhor o que exige a implementação de um plano de acção, alinhado com o CEDN, que permita assumir os encargos financeiros, garantir a capacidade de execução orçamental e acelerar a industria de defesa. E também melhorar a reorientação do emprego das FA em todo o espectro da guerra uma vez que têm sido direccionadas para operações de paz. Ou seja, conferir prontidão de combate credível que as chefias militares sabem não existir.
Acresce que a débil economia não permite absorver o enorme aumento do investimento exigido, mesmo tendo em conta o impacto na economia da indústria de defesa ou arranjos na UE. Será inevitável o dilema do desvio de recursos de outros sectores do Estado e da sustentabilidade orçamental ou o regresso do ilusionismo!
No entanto, o governo enfrenta desafios complexos tais como o enorme défice (33,4%) dos efectivos militares, a formação, o reequipamento, o rearmamento, a manutenção e as infraestruturas, tendo em conta o estado de obsolescência das FA, resultante de décadas de irresponsabilidade e laxismo. Porém, nada disto é viável sem resolver a montante a atractividade do serviço militar e os problemas da condição militar.
E, nessa medida, é inadiável o debate sério e alargado à sociedade sobre o modelo a seguir como acontece em vários países da UE. Só assim Portugal pode evitar ser confrontado com o sucedido na Primeira Guerra Mundial. Importa lembrar, que o fim do serviço militar obrigatório deixou em aberto a convocação e mobilização, quando necessário, tendo sido mistificado sem explicar aos cidadãos o que está na lei e na regulamentação.
As guerras acabam sempre por revelar a visão distópica da realidade, quando a força da razão não se sobrepõe à força sem razão que só traz destruição. Mas, uma razão sem força, como se tem verificado na Europa dá origem à impotência e fragilidade que outros saberão aproveitar. O imprevisto espreita a oportunidade!
Capitão-de-Fragata (R)