Reflexão sobre a Guerra na Ucrânia (4)
Negociações ou escalada
A reeleição de Trump mudou o ciclo para a Ucrânia e Europa. A paz pela força é mais um epíteto para dissimular o cinismo. E os seus conselheiros com narrativas contraditórias sabem que há múltiplos factores, que vão impactar a duração da guerra e os termos do acordo. É sempre mais fácil entrar num conflito do que sair dele.
A estratégia ocidental fracassou com os EUA e aliados no epicentro da ambiguidade ao não definirem sequer um plano para o final do conflito nem prevenirem as consequências da derrota militar, que será também a da grande América prestes a incluir a longa lista. É ilusão querer alcançar a paz sem cedências. A realidade reclama um acordo possível face aos múltiplos interesses, tendo presente que a ausência de guerra não significa a paz.
A Ucrânia acabará por ceder em relação à integridade territorial, como aconteceu em outras geografias. Para Trump, o tecido normativo é sustentado com base na realpolitik da competição estratégica, em que prevalece a razão da força, com o regresso das áreas de influência por razões securitárias e onde imperam os interesses.
A anexação de territórios tem sido feita com total impunidade, na violação do Direito Internacional, sustentada na perversa dualidade de critérios, perante a inaceitável cumplicidade dos EUA e uma UE sem voz. Os líderes europeus não podem, por isso, exigir paz justa, que passou a ser uma ilha sem paradeiro. Na hora da verdade, a paz será a possível com Trump a legitimar o revisionismo.
O Ocidente tem responsabilidade acrescida por desperdiçar oportunidades, quando a situação era favorável à Ucrânia. E com a agravante de querer a guerra de procuração entre a NATO e a Rússia assumida por Boris Johnson. O conflito na Ucrânia tem sido uma guerra de elevada atrição no patamar convencional. Mas os dilemas podem conduzir a erros, arrastando os EUA para um conflito direto que não querem e a Europa não está preparada. Urge restaurar a dissuasão e antecipar a escalada.
O enviado especial de Trump, Keith Kellogg, receia a “Terceira Guerra Mundial”. Considera ainda não ter havido estratégia para derrotar a Rússia, objectivo dos EUA induzido à Ucrânia para a “fazer sangrar”, que se revelou irrealista. Mesmo assim, a UE continua muito vocal na esteira de uma resolução, pedindo guerra total contra a Rússia. Ou seja, um conflito mundial!
A Rússia passou a ter a iniciativa e o sucesso operacional, tendo conquistado no último ano quase seis vezes mais território, após um impasse resultante do fracasso de estratégias concorrentes. Esta situação poderá levar a negociações com a pressão de Trump, tendo em conta a sua agenda, a difícil situação da Ucrânia com recursos exauridos, as dissensões no seio da UE e os riscos da escalada com uma potencia nuclear. Mas com uma linha mais dura do que se pensa.
Nesse sentido, Kellogg elaborou um relatório, cujas premissas são de difícil concertação entre as partes, face aos fatores conflituantes. E estão a criar divisões na UE e NATO. Mas, Trump na previsível cimeira com Putin, pode vir a usar alguns trunfos como o Ártico para alavancar as negociações, dada a sua importância geoestratégica para a Rússia e China. Convém sublinhar que qualquer plano de paz só será viável se forem revisitadas as causas que estiveram na origem do conflito.
Haverá conversas secretas, desde 2023, com Moscovo para as bases de negociações, sendo considerada a possibilidade de congelamento do conflito, que Kiev rejeita. Contudo, Zelensky reconheceu estar em risco de perder a guerra e Kellogg acredita nas negociações. Mas o chefe de gabinete de Zelensky afirma, que isso só acontecerá, quando a Rússia estiver exaurida, existindo na UE inquietação com o poder de Yermak.
Impor custos na ausência de um processo negocial torna inevitável a perigosa espiral de escalada mesmo que seja incrementado o apoio militar ocidental à Ucrânia. Ou seja, a derrota estratégia da Rússia aumentaria o risco ao empurrar Putin para a escalada nuclear evitada, em 2022, pelos EUA.
Neste contexto, a resolução do conflito é complexa devido a objectivos irreconciliáveis, à profunda desconfiança entre a Rússia e o Ocidente e às divergências na UE, que recusa a diplomacia. Não obstante, é possível antecipar duas hipóteses. Primeiro, uma solução negociada promovida pelos EUA, através de mediação musculada associada à energia usada como arma para debilitar a economia de guerra russa. Segundo, a Europa assumirá o esforço de guerra, que conduzirá ao inevitável impasse doloroso, tendo em conta o factor político-militar, demográfico, económico e o impacto das sondagens.
Há demasiado ruído mediático como se constata na multiplicidade de planos, profundas dissensões e retórica inconsequente com declarações contraditórias. Todavia, a UE não deve abdicar de participar nas negociações, onde além das garantias de segurança da Ucrânia, devem ser discutidas medidas de restauração de confiança com a Rússia, equilíbrio estratégico e controlo de armamento nuclear.
No entanto, muito vai depender de Putin, que não acredita no cessar-fogo com receio que sirva para rearmar a Ucrânia como aconteceu com os acordos de Minsk -assumido por Merkel e por um think tank. Trump quer um horizonte temporal para acabar com a guerra que não coincide com o de Putin, cujos objectivos estratégicos passam por alterar o regime em Kiev e a arquitectura de segurança europeia no âmbito de uma “nova Ialta”, em que Trump parece estar alinhado desde o anterior mandato.
Na verdade, Trump não quer financiar a guerra nem tampouco quer custear a paz. A retirada dos EUA vai ser paga pelos ucranianos enganados com slogan “as long as it takes”, enfrentando a derrota. E a UE não terá capacidade de assegurar o esforço de guerra prolongada da Ucrânia, considerando a frágil indústria de defesa, a estagnação económica, a dependência energética e instabilidade politica e financeira de vários países da UE.
Enquanto Zelensky corre contra o tempo, a UE insiste nos debates estéreis dividida entre o preço de ganhar ou perder a guerra. A conta dos europeus virá mais tarde graças à liderança europeia. Um verdadeiro hino à hipocrisia!
A Rússia está determinada a uma longa guerra alimentada pela narrativa ocidental com a sua capacidade de sustentação assente na economia de guerra produzindo num ano aquilo que a Europa produz em três meses apesar da UE ter um PIB cerca de dez vezes superior. Além disso, tem maior potencial de combate e mais recursos, mobilizando cerca de 30 mil homens por mês. Putin aposta na fragmentação da UE e na erosão da ajuda militar à Ucrânia. E há ainda a debilidade relativa às munições e às reservas de guerra da NATO.
Porém, sem homens o armamento deixa de ser relevante. O prolongamento do conflito incentivado pelos falcões - cúmplices da inexistente defesa europeia -, não vai alterar o curso da guerra e resulta no colapso da Ucrânia com baixas infindáveis e mais território perdido. A demografia não favorece a Ucrânia. E o tempo favorece a Rússia, cuja sustentação não foi afectada pelas “sanções nunca vistas” com a economia a crescer mais do que a dos EUA. E o apoio do “novo eixo” hostil ao Ocidente vai garantindo o regime.
A questão crucial é o diferencial significativo entre o apregoado colapso da Rússia e o tempo que a Ucrânia não tem para continuar o conflito prolongado com recursos exauridos, efectivos insuficientes e milhares de soldados a desertarem. E, mesmo assim, a NATO e aliados continuam a alimentar falsas expectativas, como aconteceu com Mark Rutte e António Costa. Esta atitude irresponsável contribui para a Ucrânia perseguir a sua estratégia fracassada de derrotar a Rússia e evitar negociações apesar de dizer o contrário.
Assistimos, de facto, ao contorcionismo inusitado e sucessivas cimeiras de burocratas que expõem, de forma perturbadora, a falta de visão de conjunto e de coesão. Com efeito, proliferam a especulação e interpretações sofisticadas. Por outro lado, é pungente ver Zelensky mudar de objectivos, depois de proibir negociações com Putin num decreto presidencial ainda não revogado.
E, apesar de confrontado com o fracasso, está refém da pressão da elite com ligações à extrema-direita, que não aceitou a autonomia do Donbass prevista nos Acordos de Minsk legitimados pela Resolução 2202 da ONU. Em acumulativo as suas iniciativas precipitadas e a retórica, por vezes, arrogante, com contradições insanáveis procuram condicionar os aliados. Isto revela manifesta dificuldade de controlo da gestão político-diplomática.
A guerra é caos e sofrimento, mas não terá a solução rápida, porque Putin é inflexível nas condições, os líderes da UE permanecem divididos e a postura agressiva da NATO adiciona complexidade. A continuação do conflito antagoniza mais as relações entre o Ocidente e a Rússia com consequências catastróficas para a Ucrânia, a Europa e o mundo. E não terá solução militar desde que o inesperado não aconteça!
Capitão-de-Fragata (R)