Em nome de todas as crianças: um melhor Sistema de Proteção de Crianças em Perigo

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Todos nos impressionamos com as notícias da morte de uma criança, em particular se na sua origem estão maus tratos ou negligência. E não é para menos. Qualquer o Português “atento” “conhece” a Valentina ou a Jéssica. Mas, se a espuma dos dias faz acalmar os ímpetos justiceiros do povo de brandos costumes, também faz esquecer que foram anunciadas, em prime time, auditorias às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Mas, quem já leu ou, sequer, viu algum dos relatórios dessas auditorias? A que conclusões se chegou? Que impactos tiveram na melhoria na atuação das CPCJ e do Sistema de Proteção em geral? De que forma contribuíram para a redução dos infortúnios de crianças como a Valentina ou a Jéssica. Terão sido apenas uma forma de rapidamente sacudir a pressão mediática e mitigar o escrutínio público?

O Sistema de Proteção de Crianças em Perigo precisa, com urgência, de uma melhoria quanto à sua eficácia, eficiência e qualidade. Tendo sido criado no final do século passado, ainda hoje se debate por ser compreendido, apresentando três dimensões inovadoras: é desjudicializado, descentralizado e assenta num modelo administrativo da Governação Colaborativa. 

O problema de se tratar de um Sistema muito à frente do seu tempo gera incompreensões que prejudicam, desde logo, a sua eficácia. A complexidade dos problemas, aliada à falha de informação e de formação de quem o manuseia, faz com que, precipitadamente, a intervenção passe a ser judicializada. A título de exemplo, refira-se, desde logo, a grande quantidade de processos de absentismo escolar a correr termos nos tribunais de família e menores. Será mesmo nos tribunais que se resolve o absentismo escolar?

Será equilibrado que as CPCJ tenham todas a mesma composição formal independentemente de intervir em oitocentos ou mais processos por ano ou em apenas dez processos ao ano? Esta situação cria um problema de eficiência, na medida em que não se pode tratar o que é diferente com soluções iguais. É expectável que uma CPCJ com tão baixo volume processual adquira conhecimento e experiência suficientes para resolver problemas sociais tão complexos como maltrato físico ou psicológico, violência doméstica ou abuso sexual?

Depois, há, seguramente, um problema de qualidade que resulta, desde logo, da opacidade com que trabalham as CPCJ e da forma como produzem os seus resultados. A Comissão Nacional de promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens apresenta, anualmente, um Relatório de Atividades com dados numéricos sobre a atuação das CPCJ, porém, sem retirar qualquer conclusão quanto à melhoria da qualidade da intervenção, e, tal como já foi dito, não publica os resultados das auditorias, que são sempre reativas a uma situação de crise, mas sem transpor conclusões ou de que forma podem contribuir com medidas organizativas e preventivas de situações de maus tratos e violência às crianças.

Há mudanças necessárias já identificadas e que há muito se impõem: alargar prazos das medidas de promoção e proteção a executar em meio natural de vida; clarificar o modelo colaborativo (não bastando decretar a colaboração) determinando consequências no caso de incumprimentos; a tão necessária especialização dos agentes de proteção; a criação de equipas dedicadas que, em alguns casos, deveriam ser interconcelhias (como aliás já prevê a própria lei de proteção), entre outras alterações relevantes, também identificadas e sugeridas por alguns especialistas e que subscrevemos. Ainda assim, faltará, quanto a nós, uma mudança estrutural que favoreça uma melhoria substancial do Sistema de Proteção como um todo.

Defendemos, há já algum tempo, a criação de uma Instituição capaz de liderar todo o Sistema de Proteção, mantendo um diálogo regulatório com as grandes e poderosas instituições públicas do país (Segurança Social, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Ministérios da Saúde e da Educação), mas, também, com as instituições que representam os interesses privados (União das Misericórdias, CNIS, CONFAP, etc.), que, mais vezes do que seria de esperar, teimam em não cumprir com as suas responsabilidades para com o Sistema (e, por conseguinte, para com as crianças), previstas na Lei de Proteção. 

Esta nova Instituição, revestida do poder de autoridade regulatória, com legitimidade democrática (nomeada pela Assembleia da República) e técnica, teria a responsabilidade de  sensibilizando as instituições públicas, cooperativas e privadas para o seu relevante papel, quer enquanto entidades de primeira linha, quer como entidades que designam os representantes que integram as CPCJ , agir de forma coercitiva perante as intransigências de vária ordem, existentes há quase 25 anos e há muito diagnosticadas. 

É, porém, essencial que essa Instituição não esteja capturada politicamente, e simultaneamente, que não esteja sujeita aos caprichos da alternância política. A proteção das crianças em perigo, se é verdadeiramente um desígnio (inter)nacional, como faz crer a Constituição da República Portuguesa, a Convenção sobre os Direitos da Criança, ou a Carta Fundamental dos Direitos da União Europeia, então é crucial estabelecer uma liderança nacional forte, capaz de endereçar soluções a um Sistema que a todos convoca a participar ativamente e a partilhar recursos, mas que não tem, neste momento, soluções para as constantes e permanentes falhas.

É certo que a infalibilidade do Sistema de Proteção será, como em todos os Sistemas organizados pelos homens, certamente, uma utopia, mas se há condições para se tornar melhor, mais eficiente e mais eficaz, então que se rebele, que se transforme e que se assuma na sua plenitude, em nome de todas as crianças, não só da Valentina e da Jéssica.

Psicólogo, Formador, Mestre em Administração Público-Privada, Perito em Direitos das Crianças

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