Em memória de Michael Gerson

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Não sendo esta coluna habitualmente dedicada a elogios, a partida de Michael J. Gerson (New Jersey, 1964) obriga a abertura de uma exceção. No final do texto, caso o propósito seja bem-sucedido, o leitor entenderá porquê.

Nas memórias de Ben Rhodes (The World As It Is, 2018), aquele que foi um dos mais idealistas assessores de Obama na Casa Branca relata a opinião do então eleito sobre o discurso que o seu antecessor, George W. Bush, fizera ao tomar posse pela segunda vez, em 2006. "É um grande discurso, se pensarmos bem nisso", terá apreciado, causando estupefação entre a sua equipa de speechwriters.

Dizia assim: "Todos os que vivem em tirania e desespero sabem que os Estados Unidos não ignoram a vossa opressão nem desculpam aqueles que vos oprimem. Quando se levantam pela vossa liberdade, nós levantamo-nos convosco". Foram estas palavras, no zénite do neoconservadorismo e já além do seu pico de popularidade, que Bush proferiu diante do Capitólio na inauguração do seu segundo mandato.

O cumprimento de Barack Obama a esse discurso -- compreensivelmente privado, após uma campanha anti-guerra e anti-Bush contra McCain, em 2008 -- era mais do que uma comunhão dos princípios democráticos que reproduziria nos seus próprios discursos no Cairo, nas ruas de Berlim, na receção do Nobel da Paz ou em Westminster. O cumprimento de Barack Obama, provavelmente o primeiro presidente-escritor deste Gettysburg, era também o cumprimento de um homem de palavras num alto cargo a um homem de palavras que havia servido esse cargo. E esse homem era Michael Gerson.

Gerson, um mais do que certo anónimo nos nossos círculos nacionais, foi o autor dessa intervenção e de muitas outras que marcaram a abertura do século XXI e que todos nós, de uma forma ou de outra, escutámos na televisão. A expressão "Eixo do Mal", que batizou até um programa de comentário político em Portugal, foi cunhada por ele. O discurso de Bush a seguir ao 11 de Setembro, numa sessão conjunta do Senado e do Congresso, foi escrito por ele. "We will not tire, we will not falter and we will not fail" é uma punchline característica da parceria Bush-Gerson.

A aliteração e a implacabilidade tornaram-se munições frequentes da Sala Oval desde que o jornalista, formado em teologia e estudos bíblicos, foi recrutado em 45 minutos de entrevista de emprego. A um Bush atabalhoado e disperso Gerson trouxe disciplina e ritmo na coloquialidade.

A sua fé evangélica, estrutural até ao fim da vida, seria importada para a linguagem da presidência através de imagens como "a liberdade e medo, a justiça e a crueldade, estiveram sempre em guerra, e sabemos que Deus não é neutro entre elas" ou "quer levemos os nossos inimigos à justiça ou a justiça aos nossos inimigos, ela será entregue". E o seu aconselhamento ao Presidente ultrapassava o desenho da retórica. Segundo Bill Kristol, Gerson "foi provavelmente o mais influente assessor numa Casa Branca, que não um chefe de gabinete ou conselheiro de segurança nacional, na histórica recente". Vindo de um gabinete na cave, ficaria a quatro portas da Sala Oval após um enfarte em 2004.

Depois de Bush, regressaria às páginas dos jornais como colunista do Washington Post, onde, à semelhança de David Frum na Atlantic, combateria o contágio do trumpismo nos republicanos como antigo staffer do partido. Foi um dos poucos conservadores a antever o dano que Donald Trump causaria à democracia norte-americana ainda antes deste ganhar as primárias, em 2016. Ao contrário da maioria do establishment do GOP, não precisou de perder umas intercalares para isso.

A sua luta contra a depressão e contra o cancro, que não escondeu, era tema recorrente da sua coluna no Post. O segundo acabou por levá-lo. Às suas palavras não.

Colunista

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