Em louvor do português do Brasil

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Na minha infância já longínqua eu lia correntemente as revistas infantis brasileiras e a única estranheza que me lembro de ter sentido foi não entender quando se usava a palavra “caminhão” e quando a palavra “camião”.

As diferenças entre o português usado em Portugal e o português falado no Brasil existem, por certo, ao nível da pronúncia como ao nível da semântica, mas basta pronunciar devagarinho para que uns e outros se entendam e basta fazer um pequeno esforço de reflexão para adivinhar o que se esconde atrás da nova palavra que nos aparece.

Um jornalista de S. Paulo escreveu as suas desventuras por ter recebido um automóvel importado com as instruções em português de Portugal. Adivinhar que “farol” era “luz” e “travão” era “freio” estava além do seu entendimento.

Eu não acredito na existência de uma língua brasileira (uma cultura é outra coisa) e verifico que nem os americanos reclamam não falar inglês nem os mexicanos consideram falar a língua mexicana. Angolanos e moçambicanos consideram a língua portuguesa como um património que conquistaram ao colonialismo. Por que razão vem do Brasil essa reivindicação de não falarem a mesma língua que se fala em Portugal?

Quem não sabe ler Guimarães Rosa ou Luandino Vieira não domina o português em toda a sua extensão. Um brasileiro considerar-se incapaz de ler os clássicos portugueses significa que ele não saberá ler os seus clássicos, nem José de Alencar nem Machado de Assis.

Por isso, saudando a iniciativa deste jornal de lançar um suplemento destinado à grande e estimável comunidade brasileira que vive e trabalha connosco em Portugal, ideia que me parece muito feliz, interrogo-me sobre o que significa escrever “em português do Brasil”.

Na minha vida diplomática encontrei uma vez uma dificuldade semântica na redação de um comunicado conjunto entre Portugal e o Brasil. Tratava-se da palavra “cimeira”, que para os brasileiros só poderia ser “cúpula”. Não foi difícil nem dramático resolver o problema: o comunicado, no texto brasileiro dizia “cúpula”, e no texto português usava “cimeira”. Lembrei-me da canção que Louis Armstrong e Ella Fitzgerald interpretavam sobre as diferenças entre o inglês britânico e o inglês americano: “You say tomato (tomeito) I say tomato (tomato) “. Não foram estas diferenças que afetaram a língua inglesa nem a impediram de atingir a força hegemónica que hoje tem no mundo.

Se reconheço que a língua e a cultura brasileiras são autónomas e bem diferenciadas em relação à nossa língua e à nossa cultura, recuso argumentos como aquele que defendia que o Padre António Vieira não era português, mas sim brasileiro, porque de pequenino comia mandioca.

Um estudioso da literatura brasileira, gaúcho de origem alemã, indignava-se por se estudar no Brasil a tradição literária portuguesa, quando a literatura alemã era bem mais rica. Francisco Weffort falava, a propósito dessas nostalgias de outras colonizações “mais civilizadas”, que de vez em quando percorrem as almas brasileiras, num “bovarismo do Brasil”.

Madame Bovary procurava, através das suas infelizes aventuras amorosas, salvar o seu presente da asfixiante vulgaridade em que vivia. O bovarismo brasileiro quer fazer isso com o passado. O que poderíamos ter sido pesa-nos sempre como uma ânsia não cumprida. Mas às vezes faz-nos esquecer o que poderíamos ser no presente e no futuro.

O português do Brasil é afinal a língua portuguesa nos seus modos e registos diversos, gaúchos, cariocas ou nordestinos.


Diplomata e escritor

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